Relato sobre Pinheirinhos

Segue um relato do que eu, Lívia Moraes, e Cristina Alvares Beskow, vimos e ouvimos no terreno e um dos abrigos dos ex-moradores do Pinheirinho.
É longo, mas vale a pena exercer a paciência revolucionária aqui.


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Como se encontram os moradores do Pinheirinho? Um relato do que vimos e ouvimos num abrigo em São José dos Campos por Lívia Moraes e Cristina Beskow

FEVEREIRO 4TH, 2012

No dia 02 de fevereiro, participamos do ato nacional em solidariedade aos moradores de Pinheirinho, em São José dos Campos, com cerca de 5 mil pessoas de diversos estados. Em seguida, fomos ao terreno do Pinheirinho, para tentar colher depoimentos. Antes mesmo de chegarmos, já vimos bombeiros cerrando pinheiros que contornam o antigo bairro. Um dos símbolos da ocupação está sendo cortado, como uma forma de apagar a história de luta das pessoas que moravam ali há quase oito anos.
Ao entrarmos, uma visão assustadora: o bairro que antes acolhia milhares de pessoas agora se encontra inteiro no chão: escombros para todos os lados, roupas, brinquedos, livros, cadernos, mochilas, computadores e eletrodomésticos espalhados e amassados em meio à lama e à poeira. Só sobraram alguns jardins muito bem cuidados. O que era um bairro cheio de vida, com pessoas conversando nas portas de casa, crianças soltando pipa e brincando de pega-pega, com comércio e vida coletiva sendo organizada socialmente, politicamente e culturalmente, tornou-se um amontoado de tijolos, uma área devastada.
Viam-se pedaços de móveis e eletroeletrônicos adesivados com os números dados pela prefeitura, com a promessa de que haveria tempo para os moradores voltarem e buscarem seus pertences. Mas, não houve tempo para a maioria deles. Alguns salvaram metade das coisas, outros não salvaram nada. Eles ainda nos explicaram que muito foi roubado, principalmente dinheiro e objetos pouco mais valiosos1.
Logo encontramos um senhor com cabelos grisalhos vasculhando os restos de sua casa. Ele pediu que não registrássemos seu nome, afinal há muitos sendo perseguidos. Sua ex-vizinha, que tem cerca de 70 anos, trabalha para a prefeitura e, depois de ter dado uma entrevista, passou a ser ameaçada de perder seu emprego. Ele nos contou bastante emocionado como sua casa era dividida, contou sobre as telhas que havia acabado de comprar. Mostrou onde havia o mercadinho, onde a esposa vendia frutas, verduras e carnes, na porta de casa. Este senhor trabalha com pintura e nos mostrou orgulhoso algumas de suas placas pintadas, que se encontravam no meio dos escombros.
Em meio ao entulho que escondia a história de vida de milhares de pessoas, ainda encontramos três gatos e três cachorros submergindo e emergindo entre os escombros, como que tentando entender o que aconteceu. É bastante plausível, já que para nós, seres humanos racionais, também está sendo muito difícil entender e assimilar esta tragédia.
Encontramos algumas pessoas visitando suas antigas casas, como quem vai ritualmente ao cemitério visitar o túmulo de alguém que amava. Elas chegam até o local e ficam em silêncio, tentando acordar do pesadelo. Mas não acontece e elas tem que enfrentar a dura realidade. Logo encontramos uma moça, com cerca de 45 anos, que também visitava sua casa. Ela nos contou que era parte da contra-tropa de choque do Pinheirinho e estava preparada para lutar até o fim. Mas, surpreendidos naquela manhã de domingo, não puderam se organizar. Ela estava fora do Pinheirinho quando os policiais chegaram e afirma ter furado o cerco para procurar seus netos. De sua casa, nada restou, a não ser concreto e tijolos quebrados.
Em meio a tudo aquilo, vimos um carro grande e moderno cujos adesivos indicam ser da empresa “Cão sem Dono”, cujo slogan é “os animais pedem justiça”2. Há informações de que a prefeitura vem gastando mais com os animais que com os seres humanos3.
Chegamos até o local onde se encontrava o barracão comunitário, onde aconteciam as reuniões e assembléias. Logo ao lado, havia um parquinho das crianças e, atrás, a igreja católica. Tudo destruído! Só ficaram os buracos no chão, onde estavam fincados os brinquedos, e os rastros do trator.
Nos pinheiros que ainda estão de pé, ainda permanecem pedaços de tecidos vermelhos rasgados. A portaria está vazia. Não sobrou nada das inúmeras bandeiras de protesto que ali flamejavam.
De lá, seguimos para um dos abrigos. Alguns ex-moradores nos explicaram que o mais problemático era o abrigo do CAIC Campo dos Alemães. Resolvemos ir nesse. Chegamos lá e havia guardas municipais logo na porta, achamos que poderíamos ser proibidos de entrar, mas passamos direto e ninguém nos parou. Levávamos uma caixa de doações (escovas de dentes, pastas de dentes, fraldas, absorventes, roupas, papel higiênico). Mal chegamos e as pessoas voaram para a caixa. Não foram nem 10 segundos para que toda a doação fosse pega.
Apesar de haver crianças brincando, a maioria tinha seus olhos vermelhos e inchados de choro, as pessoas se encolhiam em seus colchões. Ao ver a câmera filmadora, muitas eram as pessoas que queriam falar, elas sentiam muita necessidade de denunciar tudo o que aconteceu.
A maioria delas, além de indignadas com a forma como foram despejadas, de terem sido enganadas que poderiam voltar para buscar suas coisas e, no final, terem perdido tudo, reclamavam de serem tratadas como gado, como bichos, por não terem condições mínimas de higiene. Muitas diziam “somos pobres, mas não somos sujos”. As solicitações são por sabão em pó, sabão em pedra, sabonete, absorvente, fralda, calcinhas, cuecas, toalhas, pente, roupinha de bebê etc.
Eles acusam as assistentes sociais de não entregarem a totalidade das doações. Para pedir qualquer coisa, as pessoas tem que enfrentar uma fila, onde fazem o pedido do que necessitam. A assistente social escreve o pedido em uma ficha, que é usada para retirar a doação. Muitas pessoas foram expulsas de suas casas levando apenas a roupa do corpo. Por isso, as necessidades são muitas. Vimos muitos pedidos de cuecas e calcinhas, por exemplo. Como não existe uma estrutura para lavarem as roupas, muito do que se pega vira descartável.
Constatamos que havia uma pilha enorme de roupas, mas cada um tinha apenas 5 minutos para entrar e escolher as peças. Não havia tempo suficiente nem para checar os tamanhos. Absorventes e fraldas são controlados e cada pessoa tem direito a 2 unidades diárias, não podendo requerer mais. Toalha também há apenas uma para cada pessoa. Como falta produto de limpeza, eles não conseguem lavar suas roupas. “Tudo isso é muito humilhante”, disse uma senhora revoltada. Eles pedem que, ao fazer doações, que entreguem diretamente a eles, que não passe pelas mãos das assistentes sociais.
O abrigo é uma escola municipal e a maioria das pessoas está dormindo num ginásio, sem nenhuma privacidade, onde a claridade é muito grande, dificultando o sono. Além disso, há reclamações da presença de pombos que sujam o local com fezes. É neste espaço que estão mulheres grávidas, crianças e idosos, todos espalhados em colchões finos pela quadra, salas e corredores.
Os alojados dizem que a comida é de péssima qualidade e varia entre salsicha e linguiça, mal cheirosos e mal temperados. Há filas de cerca de 2 horas para terem acesso à refeição e há informações de que em outro abrigo a comida veio estragada4. Além disso, existem pessoas com problema de saúde que já foram hospitalizadas em função da comida. É o caso de uma senhora que possui diabetes e que passou mal após comer calabresa, única comida que havia disponível.
Uma senhora, com 6 filhos, conta que o carrinho de bebê virou na hora em que fugia das bombas da polícia no dia da reintegração, e que seu filho mais novo quase caiu de cabeça no chão. Seus outros dois filhos pequenos estão com a garganta doendo, desde então, por conta do gás lacrimogêneo. Seu marido está há dias procurando uma casa para morarem, mas não acha nada que caiba toda a família por menos de mil reais. Ela conta que só é possível receber o cheque do bolsa aluguel (no valor de R$ 500,00) se já tiver endereço em outro lugar. E, se pegar o cheque, não pode voltar para o abrigo. Também ouvimos outras pessoas que não estão encontrando moradia pelo valor do bolsa aluguel e não tem para onde ir.
Outro morador contou-nos que até achou um lugarzinho para morar, mas a prefeitura demorou para entregar o cheque e ele perdeu a locação. Outro morador conta que a esposa passa o dia todo na rua procurando casa, enquanto ele cuida dos 5 filhos no abrigo, mas não consegue nada de R$ 500,00. Seu patrão já havia ligado, intimando-o, dizendo que se não fosse trabalhar imediatamente, já poderia levar a carteira para “dar a baixa”. Os filhos, já matriculados nas escolas e creches, não estão conseguindo ir à aula porque o abrigo ficou muito longe da escola e o pai já recebera telefonema sendo avisado que se não levasse seus filhos, perderia o bolsa-família.
O problema fica ainda maior com o início das aulas na próxima segunda-feira, dia 06 de fevereiro, já que a escola municipal onde estão abrigados terá que ser desocupada e muitos não tem para onde ir. Há rumores de que os alojados devem ser levados para algum lugar no Limoeiro ou no Putim (outros bairros periféricos, mas bem longe dali). Pelo o que disseram, estes outros lugares são barracões, ainda mais precários que o local onde estão.
Um rapaz conta com orgulho que é pedreiro, que seus filhos são muito inteligentes e que não tiram menos de 8,0 na escola. Chama seu filho e pergunta: em que você vai trabalhar, meu filho? Ele muito timidamente responde: vou ser arquiteto. Os olhos do pai enchem de lágrima. Ele conta que tem parentes na zona rural da Bahia, mas se for para lá, seus filhos não poderão estudar.
Michele e Bia nem conseguem descrever o que aconteceu, choram sem parar e dizem: “que saudade temos do nosso Pinheirinho!” As duas perderam os empregos depois que foram despejadas. Um rapaz mostra-nos a filmagem que fez do celular na hora em que a polícia chegou, mas não tem como passar para nenhum computador, muito menos para a Internet.
Uma menina de 16 anos carrega sua filha de apenas 23 dias e conta-nos que teve uma paralisia facial de tanto nervoso que passou. Percebe-se, ao falar com ela, pelas suas dificuldades em relatar os acontecimentos com parte da boca paralisada. Sua filha tinha alguns poucos dias de vida no dia da reintegração e correu risco de ser sufocada com os gases de efeito moral.
Outro senhor, pai de uma menina com problemas psicológicos, nos mostra a lista com seus móveis que dizem estar em um depósito. Ele disse que só conseguiu pegar metade de suas coisas e tem medo de chegar ao depósito e mais coisas terem sumido. Ele conta que disseram que poderia voltar depois para buscar o resto, mas foi tudo destruído.
Dona Maria de Jesus, cerca de 75 anos, era zeladora da igreja e conta que assim que ouviu os fogos, no dia da reintegração, ficou assustada, mas achou que não era nada. Logo vieram chamá-la para que abrisse a igreja, para abrigar as crianças. Pegou a chave e saiu correndo em meio às bombas, mas chegando lá, logo às 6h00 da manhã, a igreja já havia sido demolida. Foi o primeiro lugar que derrubaram. Ela diz que não tem tempo para reconstruir a vida dela, mas tem fé que “o bispo e o papa” vão fazer algo por eles. Pelo menos conseguiu salvar a Xuxa, sua cachorrinha, diz ela.
Na saída do abrigo fomos indagados sobre a volta do CONDEPE – Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, porque muitos deles não tiveram oportunidade de dar seus depoimentos e tem muitas denúncias a fazer ainda.
Também ficamos sabendo que 14 assistentes sociais se recusaram a participar deste conjunto de atrocidades e agora estão sendo perseguidas pela prefeitura. Já denunciaram os problemas ao Conselho Regional e aguardam os procedimentos que podem ser tomados.
Além disso, durante o ato, soubemos que uma das lideranças do movimento, o Marrom, já sofreu duas tentativas de sequestro pelos policiais. Uma foi na igreja, onde estavam abrigados logo após a reintegração, e outra na madrugada do dia 02 de fevereiro, quando foi cercado por sete viaturas, mas foi ajudado por ex-moradores do Pinheirinho que se encontravam por perto e correram para ajudá-lo5.
É esta a situação em que se encontram os ex-moradores do Pinheirinho: jogados em abrigos improvisados, em condições precárias de higiene e alimentação, muitos já perderam seus empregos e suas crianças estão impedidas de ir à escola. Muitos não tem para onde ir e a bolsa aluguel de miséria não poderá lhes dar a vida de volta. Sem contar as perseguições que muitos ex-moradores estão sofrendo. Uma tragédia sem precedentes. Um crime contra milhares de pessoas que tinham suas vidas organizadas num terreno que já deveria ter sido desapropriado há muito tempo. Tudo para atender aos interesses de um criminoso chamado Naji Nahas e de toda a corja de especuladores imobiliários. Tudo com autorização do governador Geraldo Alckmin e do prefeito Eduardo Cury, com uma simples canetada da juiza Márcia Loureiro. E agora, quem vai resolver o problema destas famílias? Quem vai pagar por tamanha injustiça e devolver suas vidas?

2Segundo informações do site www.caosemdono.com.br, eles afirmam que “Diante desse quadro que encontramos aqui, não nos restaram alternativas a não ser brigar pelo direito dos animais. Abrimos um BOLETIM DE OCORRÊNCIA contra a Prefeitura de São José dos Campos, acusando-a de maus-tratos. Também ingressamos no Fórum Central com uma AÇÃO CIVIL PÚBLICA e hoje estamos, neste exato momento, entrando com representação junto ao MINISTÉRIO PÚBLICO por crime ambiental”.

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