Reflexões sobre escola e racismo.

Por Ricardo Festi

Estou convencido de que o tema mais importante para a disciplina de Sociologia no ensino médio é a Questão Negra no Brasil, já que é impossível explicar qualquer outra aspecto fundamental da sociedade brasileira (seja econômico, social, cultural, etc) sem passar por entender as razões e as consequências da situação do negro em nosso país. Sua secundarização, diante de outros inúmeros e importantes debates, diz um pouco do racismo que insiste em se manifestar. Mesmo com uma lei obrigando o ensino de história da África e da cultura afro-brasileira, ainda estamos muito longe do ideal almejado. Não basta baixar leis se os professores não forem capacitados para tal, pois a sua imensa maioria nunca teve uma aula sobre história da África na universidade, nem mesmo um tópico dentro de alguma disciplina. Mas as dificuldades aumentam quando olhamos para a realidade da escola pública brasileira e as condições de trabalho dos professores. Como parte do processo de precarização do trabalho, o papel do professor enquanto educador - um intelectual dentro da escola, que pensa e articula a reflexão junto aos alunos diante de uma realidade dinâmica - vem sendo substituído por uma pedagogia tecnicista, em que a gestão da escola, os aspectos burocráticos e os meios tecnológicos (ou o fetiche por estes) tornaram-se o fim e não os meios. O objetivo é apresentar números, numa lógica de competitividade, premiação (os Bônus) e punição. Busca-se uma escola eficiente do ponto de vista mercadológico, não uma escola reflexiva e crítica do ponto de vista pedagógico.

O resultado é que a questão negra e o racismo dificilmente são debatidos como deveriam nas escolas públicas brasileiras (em geral aparecem como algo folclórico, ou seja, exótico, em atividades com palestrantes, rodas de capoeira, etc). Fica aí evidente mais uma vez uma divisão "racial": nas escolas públicas, onde estão matriculados a imensa maioria dos negros, este tema não é abordado; nas escolas particulares, composta majoritariamente por brancos, a questão negra também não é abordada, e para muitos brancos essa falha pouco mudará em suas vidas, já que seu status quo (como o acesso as melhores universidades e empregos) estará garantido por esta sociedade racista. Ou seja, a lei que obriga o ensino de história da África e da cultura afro-brasileira é "para inglês ver".

Trazer para dentro da escola (e não somente nas disciplinas de humanas) o debate sobre a questão negra no Brasil é uma tarefa árdua, que enfrenta inúmeras dificuldades políticas e pedagógicas. Vejamos algumas: muitos alunos brancos não desejam debater essa questão, pois "não lhes diz respeito"; já os alunos negros, vários ficam incomodados com o debate, por tocar em feridas abertas que fazem parte de seu cotidiano e porque ele, quase sempre, é mal feito pelos professores, permitindo a reprodução do senso-comum, de esteriótipos ou de manifestações de racismo por parte de outros alunos; da parte dos professores, estudos acadêmicos já mostraram exaustivamente que são os principais difusores dos preconceitos dentro da escola - o que torna ainda mais difícil pautar esse tema. Uma lista enorme de dificuldades poderia ser descrita aqui, o fato é que essas dificuldades são a prova cabal de que o racismo é latente e por isso mesmo é necessário pauta-lo.

É óbvio que a luta contra o racismo não passa apenas pelo processo educativo. Não tenho nenhuma esperança (idealismo) de que seja possível a implementação de uma escola livre de racismo e formadora de sujeitos não racistas. O racismo é um fenômeno social que tem bases estruturais e concretas na formação da sociedade brasileira. A luta no terreno cultural é fundamental, mas deve vir acompanhada da luta no terreno socioeconômico, contra essa sociedade dividida por classes. A lógica de Marx para a questão judaica na Europa do século XIX também serve para a questão negra no Brasil: só haverá liberdade e igualdade plena para os negros (e todas as minorias) quando superarmos a ordem burguesa e capitalista.

Ao professor que compreende a importância deste debate e desta luta, cabe a ele problematizar a questão negra em suas aulas e na escola, aprimorando o arsenal conceitual e político dos alunos (principalmente os negros) para poderem lutar contra o racismo. A este professor cabe também seguir lutando dentro e fora da escola contra o racismo e esta ordem social do capital que se beneficia com a reprodução e manutenção dos vários tipos de preconceitos e opressões.

Este post não pretende fechar o debate, mas abri-lo. Ele é apenas um fragmento de minhas reflexões sobre esse tema espinhoso. Os leitores estão convidados a manifestarem as suas opiniões nos "Comentários" deste Blog.

* * *

Abaixo indico o Dossiê: Racismo: História e Historiografia da Revista dos pós-graduandos em História da Unicamp. Apesar de ter algumas diferenças conceituais com os autores, as pesquisas que este departamento fez nas últimas décadas já deram importantíssimos aportes para melhor compreendermos a história de nosso país. Materiais como este deveriam ser distribuídos em massa para todas as escolas públicas do Brasil, para que os professores, em sua árdua tarefa de se manterem enquanto educadores (intelectuais) na contra-mão desta enxurrada de burocracia possam ter instrumentos para sua reflexão, permitindo um primeiro diálogo entre a escola básica e a universidade.


http://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/issue/view/28

3 comentários:

Renata disse...

Essa reflexão é realmente "espinhosa", mas ncessária com urgência. Encarar a discriminação racial como um problema ainda parece tabu, tanto entre muitos professores como também entre a maioria dos alunos.
E fica ainda mais assustador quando discutimos cotas. Você ja´fez isso, com certeza, e é impressionante a maneira equivocada como isso é encarado. Afinal, trata-se de um interesse mais concreto e imediato. O pior são os argumentos de quem se diz contra, alegando que isso representaria "discriminação" com um grupo. Quanta hipocrisia.

Ricardo Festi disse...

Um grupo de intelectuais norte-americanos que desenvolveram nos anos 60/70 o conceito de raciamo institucional para explicar o porque um homem branco racista nos EUA não mais usava argumentos racistas para se posicionar contra qualquer medida que beneficiasse os negros. O fato é que o racismo não está apenas no discurso virulento, mas sim na estrutura social que exclui, marginaliza e segrega um grupo, no caso os negros. A origem disso é historica e seu carater é estrutural. Por isso, numa sociedade configurada desta maneira, os brancos racistas não precisam lançar mão de argumentos raciatas; pode até usar argumentos sociais ou politicamente corretos; o fato é que possuem consciencia de que se status quo estará mantido pela estrutura social.

Luiza disse...

Interessante esse texto. Outro dia estava passeando por um blog e lá foi levantada a seguinte questão: nossas preferências sexuais podem ser consideradas racistas? A questão surgiu quando um colega de classe, homossexual e asiático, afirmou que dizer algo como "não me sinto atraíd@ por asiátic@s" pode ser considerado problemático e racista, enquanto uma colega de classe (branca) discordava, dizendo que não podemos policiar as "atrações" alheias ou muito menos repreende-las.
Acredito que essas preferências não podem ser consideradas racistas (mesmo porque, aí já seria dizer que controlamos totalmente o que nos atrai - livrando o caminho pra dizer que a homossexualidade é uma escolha, etc) e têm o mesmo caráter das preferências "magrinha vs gordinha" ou "loira vs morena" (não seria isso ter o "seu tipo"? Por exemplo gostar de homens branquinhos e magrinhos, ou branquinhos e gordinhos, ou morenos e magros, ou morenos de cabelos longos, etc), mas consigo ver os dois lados dessa discussão e não consigo identificar o "mais correto" - mas claro, seria uma situação diferente se uma pessoa dissesse "eu nunca ficarei com um índio pois eu os acho horrorosos", a discussão supõe apenas "eu prefiro ficar com garotos negros" ou similares. Gostaria de saber a sua opinião a respeito! :)
Espero que você leia comentários em posts antigos, heheh