50 anos de Libertação da Argélia e as lições da geração de 68.

Por Ricardo Festi

Há exatos 50 anos a Guerra da Argélia terminava com uma importante vitória das forças de libertação nacional. O conflito foi retratado, alguns anos depois, no belíssimo filme ítalo-argelino A batalha de Argel (1966) dirigido por Gillo Pontecorvo. Este conflito, que durou de 1954 a 1962, foi um dos mais importantes na formação das futuras gerações de revolucionários da Europa e, centralmente, da França. Não há como entender as manifestações e as barricadas de maio-junho de 1968 na França sem compreender seu nexo com as batalhas realizadas alguns anos antes em defesa da independência do povo argelino.

A conjuntura do pós-Segunda Guerra Mundial era de enfraquecimento do imperialismo e colonialismo europeu e de explosão de lutas revolucionárias no mundo colônia ou semi-colonial. Neste período aconteceram as revoluções na China (1949) e em Cuba (1959) e a independência da grande parte das antigas colônias africanas e asiáticas. Mao e Che se tornaram ícones das gerações dos anos 1960/70. Gerações estas que apresentavam suas dissidências com o stalinismo e a URSS, principalmente depois do massacre realizado pelos tanques soviéticos na Revolução Húngara de 1956, e que procuravam novas formas de organização em pequenos grupos revolucionários de cunhos trotskistas, anarquistas, maoistas, guevaristas, etc.

Dentre todos os processos de luta por autodeterminação, a Guerra da Argélia teve efeito especial sobre os franceses. Filhos da pátria imperialista e opressora, milhares de jovens franceses passaram de meros espectadores ou de uma solidariedade passiva para ações concretas contra o imperialismo de seu próprio país. Um pouco antes, já na luta contra a Guerra do Vietnã, compreenderam que a vitória do terceiro mundo alastraria para dentro de seus países uma nova força revolucionária. Foi nesse contexto que se ampliou o apoio à Força de Libertação Nacional (FNL) da Argélia.

Portanto, diferente do que escreveu hoje o jornalista e corresponde do Estadão na França Gilles Lapouge (e correspondente deste jornal na época da Guerra da Argélia), de que a libertação argelina teria marcado o “fim do abismo” e o “início de uma longa amargura”, dizemos que ela marcou o início de uma nova geração de combatentes, em que a revolução era o centro de suas preocupações. Para atingir este fim, tinham que lutar contra uma sociedade burguesa caduca – e seus movimentos fascistas – e o stalinismo e o PCF, que agia conscientemente para impedir uma solidariedade real com os argelinos e separar os trabalhadores dos jovens revolucionários. Por algum tempo estes tiveram êxito em sua política, mas poucos anos depois explodiria na França, depois da brutal repressão sofrida pelo movimento estudantil no dia 11 de maio de 1968, a maior greve operária da história deste país, com ocupação de centenas de fábricas.

Em tempos de retorno dos conflitos sociais, a Guerra da Argélia nos traz inúmeras lições, dentre as quais a da necessidade de nos organizarmos e nos prepararmos, mesmo que no terreno ideológico e da propaganda, para os futuros grandes embates que teremos contra o capital. Nos traz também a necessidade de conhecermos estes grandes embates que ocorreram no século XX, tirando as lições dos erros e acertos, e nos apropriando do arcabouço do marxismo revolucionário.

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Para não nos alongarmos mais, reproduzimos abaixo um trecho de um folheto publicado no calor dos acontecimentos de 1968 por Daniel Bensaid (um dos principais líderes estudantis em 1968 e futuro dirigente da Liga Comunista Revolucionária, organização trotskista mandelista) e Henri Weber:

O processo mediante o qual tem adquirido o movimento estudantil francês sua fisionomia atual se iniciou nos últimos anos da guerra da Argélia. Frente as atrocidades colonialistas do norte da África apareceu um movimento de rebelião moral entre os intelectuais e os estudantes franceses. A política do imperialismo francês feria diretamente a ideologia humanista compartilhada na universidade liberal. Casa vez era mais os estudantes que se colocavam contra a guerra colonial. Os mais conscientes e resolutos entravam nas organizações clandestinas de ajuda a FLN: Jovem Resistência, Movimento Anticolonialista Francês, Grupo Nizan. Ombro a ombro com os combatentes argelinos, se encarregavam de atividades de apoio e de reunir fundos. Organizavam, além disso, um perigoso trabalho de propaganda revolucionária no exército, a difusão de panfletos em quarteis, a implantação de núcleos militantes nos regimentos, a realização de espetaculares golpes de mão, como a detenção pela força dos abertos dos comboios de soldados. Frente a traição patriótica do Partido Comunista Francês, algumas centenas de estudantes se esforçaram assim em salvar a honra internacionalista do movimento operário francês.

Mas a massa estudantil estava disposta a apoiar a luta do povo argelino. Estudantes universitários e secundaristas iam a milhares nas manifestações contra a guerra colonialista. A batalha entre os defensores da Argélia Francesa e os partidários da independência era canalizada no seio da UNEF. A atitude do movimento estudantil frente a Revolução Argelina se achava no centro de todos os debates. As principais associações gerais caíam uma após outra nas mãos da esquerda. Os “minoritários” se convertiam em “majoritários”. O burô nacional da UNEF mudava de orientação e de mãos. A 27 de outubro de 1960 organizava uma manifestação na Mutualité. Apesar das denuncias do PCF e da UEC, que qualificavam esta iniciativa de provocação esquerdista idealizada pelo chefe da polícia, mais de 15.000 estudantes se concentraram na Plaza Saint-Victor e faziam frente aos guardas.

A partir de então se acelerou consideravelmente o processo de radicalização do meio estudantil. A OAS começava sua campanha de terrorismo na Argélia e na França. Frente à ameaça fascista, alguns militantes do círculo de história da UEC organizavam na Sorbone comitês de ação anti-fascistas, filiados na “frente estudantil anti-fascista” cujo objetivo era limpar o Bairro Latino dos comandos da OAS e da Juene Nación. Teve um êxito imenso na Sorbone, onde poucos dias depois de sua criação reagrupava já a várias centenas de militantes. O movimento se estendeu muito rápido as demais faculdades e aos meios intelectuais. Então tomou o nome de FUA. Sua ação foi metódica e eficaz: contando com arquivos bastante completos, organizava uma batida em regra de todo o Bairro Latino e expulsava das faculdades os militantes de extrema direita, simpatizantes e gente semelhante. Dona já do terreno, a FUA realizava intensa agitação em favor da independência da Argélia, com incursões relâmpagos contra as reuniões favoráveis à OAS, onde quer que se celebrassem. A vitória material conseguida em algumas semanas sobre os fascistas dava a FUA um prestígio enorme. Rapidamente esteve em condições de mobilizar dentro de prazos mínimos manifestações por surpresa milhares de estudantes. No dia da proclamação da independência argelina, seus militantes içaram por cima da Sorbone a bandeira da FNL.

O processo de radicalização política do meio estudantil, nascido do rechaço da guerra colonial, devia influir profundamente o movimento estudantil.

Iria provocar a metamorfose da UNEF, que de organização corporativista e folclórica se lançaria a experiência do sindicalismo estudantil.

Iria precipitar as crises da UEC, contida e secreta até então.

Iria criar condições e o marco político dentro dos quais se educou uma geração de militantes revolucionários que em sua maior parte são hoje os membros fundadores e os dirigentes dos grupos [revolucionários].

Trecho extraído do folheto Maio 68 – Ensaio Geral, escrito pelos jovens Daniel Bensaid e Henri Weber (e traduzido pelo autor deste artigo), ainda no calor dos acontecimentos. Detalhe: conseguimos este folheto, um tosco conjunto de folhas mimeografadas, com um livreiro de Porto Alegre (que ficamos sabendo depois se tratar de um ex-militante trotskistas) numa de nossas incursões pelo Estante Virtual.

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