O atual debate sobre a Anistia:
a mordaça herdada do passado e defendida no presente
Por Ricardo Festi
Recentemente teve início um novo capítulo da luta pela punição dos agentes da repressão do último regime militar brasileiro. Promotores do Ministério Público Federal do Pará resolveram acusar o coronel da reserva Sebastião Curió, símbolo da repressão à Guerrilha do Araguaia, por “sequestro qualificado” e crime continuado. Segundo os promotores, esse tipo de crime não se enquadra na relação de crimes prescritíveis. Ou seja, ele não seria enquadrado pela Lei da Anistia de 1979, que até hoje vem impedindo o julgamento e punição desses agentes. Esta ação dos promotores gerou um movimento reacionário, encabeçado pela mídia golpista e os principais personagens da criação e sustentação da Lei da Anistia, abrindo-se um novo debate político em torno desta questão.
No último domingo, o jornal O Estadão publicou uma entrevista com Miguel Reale Junior, professor titular da USP, ministro da justiça em 2002 no governo de FHC e um dos personagens na elaboração da Lei da Anistia, em que afirmou, sobre essa lei: “foi um processo de mão dupla, que também anistiou aqueles que praticaram tortura, que é um crime contra a humanidade. Ao mesmo tempo, porém, do ponto de vista interno, da política brasileira, foi o momento da volta dos cassados aos cargos públicos, dos professores às atividades universitárias, da organização dos partidos. Foi um preço alto? Foi. Mas foi o preço para trazer a paz política e social para o Brasil” (Estadão, 18/03/12).
Traduzindo em outras palavras: a Lei da Anistia é o sustentáculo do regime democrático burguês que surgiu no lugar da desgastada Ditadura Militar iniciada com o Golpe de 1964. Foi fruto de um acordo conciliatório entre os militares no poder e a sua maioria no Congresso Nacional, que tinha Sarney na presidência da casa, e a oposição burguesa e moderada, com Tancredo Neves à sua cabeça. Não à toa a chapa que ganha a eleição presidencial indireta anos mais tarde terá estes dois personagens à sua frente.
A sinceridade hipócrita de Reale é impressionante: “foi o preço para trazer a paz política e social para o Brasil”. Mais uma vez, traduzindo: foi a maneira que encontraram para impedir que a força do movimento operário, em ebulição naquele momento, com greves em todo país, se tornasse o fator determinante para impor uma transição ao regime democrático ou mesmo para outra forma de regime que superasse o Estado burguês.
Portanto, a ação de Miguel Reale e todos aqueles que compactuaram com a transição ao regime democrático, deixando os torturadores, repressores e ditadores impunes de seus crimes, manobraram dentro da superestrutura do Estado enquanto parte de uma ação consciente na luta de classe. No caso, ao lado do regime burguês. Agora esses mesmo agentes voltam a dar declarações a impressa defendendo um direito imutável e sagrado.
A ação dos procuradores é criativa, pois se trata de uma manobra dentro do sistema jurídico burguês, mas não é uma novidade. O Chile teve uma anistia muito parecida com a brasileira, garantindo impunidade a todos os que perpetraram violações de direitos humanos sob o regime do general Augusto Pinochet (1973-1990). No entanto, alguns procuradores usaram o argumento de que como os cadáveres não haviam sido recuperados após esses crimes, e era impossível determinar quando o crime prescrevera, a anistia não se aplicava a eles. Em 2004 a Suprema Corte chilena deu causa favorável aos procuradores e de lá para cá, mais de 700 agentes do Estado foram investigados e acusados de crimes nos tribunais chilenos, sendo que 30% deles foram condenados a cumprirem pena de prisão.
É necessário ser levado em consideração outra questão: diferente das demais ditaduras militares do Cone Sul, no Brasil o sistema Judiciário civil e militar foi muito mais cúmplice da repressão. Foram estes tribunais os responsáveis por muitas condenações a presos políticos – em sua maioria com base a evidências extraídas sob torturas. Lembremos da recente divulgação de uma foto de Dilma, ainda jovem, sendo julgado num tribunal militar. A mesma Dilma que hoje, junto com o PT, manobra para satisfazer os sinistros políticos da época da ditadura que sobreviveram depois da transição democrática.
Há ainda um longo caminho a ser percorrido até a conquista da efetiva punição dos agentes repressores da ditadura militar. É um direito ultrademocrático que nossa história seja esclarecida e que os crimes cometidos pelos agentes do Estado sejam julgados. Para isso é necessário um combate ao “fetichismo da norma” e do direito positivista, reproduzido por estes meios de comunicação e personagens da transição pactuada em nosso país. Se o direito é fruto de um estágio da luta de classes, ou seja, de uma correlação de forças entre as classes fundamentais da sociedade burguesa, garantido pelo aparato coercitivo do Estado, a possibilidade de muda-lo, arrancando concessões democráticas dentro do capitalismo, só será possível fruto também da luta e da organização do movimento sindical e político. Quanto a universidade, e em particular ao IFCH, é necessário uma intensificação dos debates políticos em torno desta questão e manifestações públicas contra a Lei da Anistia de 79 e pela punição de todos os agentes da repressão.
Publicado no Boletim da Juventude as Ruas!
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