"Todo camburão tem um pouco de navio negreiro"
O Rappa
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A escravidão nas Américas foi uma das combinações mais explosivas do desenvolvimento desigual e combinado que acabou por consolidar a burguesia como classe dominante. A utilização de força de trabalho escrava foi decisiva para a generalização da força de trabalho livre. A tensão histórica de todos os séculos da escravidão esteve marcada pela resistência escrava em um polo e a classe dominante, branca, em outro. Em todos os cantos da América, onde havia escravidão, havia resistência. Resistência que se expressava em diversas formas, sendo a fuga e formação de quilombos a mais conhecida. Houve quilombos nas Guianas, na Jamaica, Suriname, Colômbia, Venezuela, Brasil, Estados Unidos[1] , entre outros países. Parte significativa do problema para as autoridades repousava na comunicação dos quilombos com seus arredores, sejam vilas, cidades, senzalas, minas, tabernas, pequenos comerciantes. Os quilombos, ao contrário do imaginário, não ficavam isolados. Em diversas partes da América, principalmente no Caribe, e em especial na Jamaica, houve também insurreições escravas. O ponto alto da resistência negra e escrava foi a revolução haitiana, que combinou a luta pelo fim da escravidão (1794) com independência política (1803). Seu exército derrotou os planos coloniais da Revolução Francesa e combateu em pé de igualdade com o mais forte exército europeu, o de Napoleão. Um gênio político, Toussaint L’Ouverture, foi seu líder. No Brasil, a firmeza e resolução de Zumbi dos Palmares garantiu seu espaço entre os grandes. Foi a luta de classes, também aqui, o motor da história.
Hoje os negros são fortemente oprimidos pelo capitalismo e sua burguesia racista. Ocupam os piores trabalhos, são os mais mal pagos, são sistematicamente assassinados pela polícia de todos os países – no Brasil os números de negros assassinados pela polícia são do porte de uma guerra civil, nos EUA a enorme maioria da população carcerária é negra, são os negros (e os latinos) os que mais sofrem com a crise capitalista e quem primeiro teve suas casas tomadas pelos bancos; há pouco mais de um mês Troy Davis, acusado de matar um policial branco, foi assassinado pela Justiça racista em um caso publicamente irregular. A opressão ao povo negro não acabou com a escravidão, sobrevive e se reproduz em todos os poros desta podre sociedade capitalista, que nada tem a oferecer.
Uma elite esmagada pela metrópole e o medo dos escravos
"Onde há escravidão, há resistência" Clovis Moura
A resistência escrava, longe da ideologia reacionária que imagina um cenário de relações harmônicas e fusão cultural sem atritos, foi forte e esteve presente em toda a colônia e Império. À medida que a resistência escrava mostrava sua força e seu enraizamento social, se constituía como um limite da própria formação da burguesia no Brasil. Em Pernambuco, no nordeste açucareiro, Palmares resistiu heroicamente por mais de 100 anos, e só foi derrotado sob a força de canhões. Na mineração de Minas Gerais, o início de urbanização colonial se deu sob o calor da formação de centenas de Quilombos, com o maior e mais famoso Quilombo de Campo Grande – o fato do centro produtivo ser na cidade propiciava maior mobilidade aos escravos e fugidos e uma preocupação de primeira ordem para as autoridades – com aparato de segurança centralmente voltado para a defesa das fronteiras até então, é com a urbanização em Minas que as autoridades coloniais desenvolvem forças de segurança públicas exclusivamente voltadas para garantir a ordem interna. Na Bahia, Salvador foi palco de uma das mais importantes revoltas, a dos Malês, que mesmo tendo sido denunciada, impossibilitando a execução dos planos dos negros, não foi reprimida sem fortes confrontos. No Rio de Janeiro, por volta dos anos 1830 a região de Iguaçu possuía diversos quilombos que causavam pânico à Corte; em 1838 a região de Vassouras (RJ) foi palco da mais importante revolta negra no meio rural. Mais próximo à abolição, enquanto a Corte despachava mandados de destruição de quilombos, milhares de negros – livres e escravos – se revoltavam nas cidades e no campo, contando com apoio de imigrantes, e parte considerável da população.
Ao mesmo tempo em que se via pressionada pelos interesses de Portugal (uma “metrópole periférica”) e, em seguida, pela Inglaterra, a elite brasileira se encontrava às voltas com a sempre latente e por vezes aberta revolta escrava. A nascente burguesia brasileira, portanto, não contava com um espaço propriamente seu, onde houvesse margem de manobra e espaço para iniciativa própria. Para manter seus compromissos, necessitava da grande propriedade, alta concentração de renda e exportação de produtos de baixo valor agregado – até os anos 1860 (!) a maior parte da força de trabalho era escrava. Ao mesmo tempo, esse arranjo se assentava sob um potencialmente explosivo pilar, a resistência escrava – que à medida que o século XIX chega ao fim se torna resistência negra. A Inconfidência Mineira, de finais do século XIX, é um caso exemplar. Dada a fraca situação econômica e social da colônia, a falta de um exército permanente e de aliados concretos, qualquer plano inconfidente sério exigiria, pelo menos, a formação de um exército de alto contingente negro. Ao contrário, os inconfidentes apresentaram programa e plano tímidos. A denúncia do complô (de um dos seus) e os acordos estabelecidos posteriormente (entre os quais a racista mutilação em praça pública de Tiradentes) somente serviram para fortalecer os aspectos conservadores de uma elite, supostamente “nacional”, já irresoluta e incapacitada para liderar qualquer embate frontal contra as autoridades coloniais e a metrópole. Com diferenças, algumas importantes outras secundárias, em todas as rebeliões regionais dirigidas pelas elites locais, a mesma situação se impunha, sendo que diversas foram derrotadas por batalhas não-dadas ou de baixa intensidade, uma vez que seus projetos não atacavam a escravidão e à população escrava e negra livre se negava armamento.
Pressionada pelos interesses imperialistas, que davam forma e determinavam os circuitos de acumulação do país, e pela resistência negra e escrava, as elites brasileiras – seja na figura da autoridade colonial ou do pós-independência – não tinham nada a oferecer a não ser forte repressão, alta concentração fundiária e ideologia racista. Sob a pressão imperialista e o medo da revolta escrava e negra, se formava uma semicolônia.
Terra, abolição, racismo e democracia racial
Concentração fundiária e trabalho escravo foram dois elementos tão intricados no desenvolvimento nacional, tão profundamente marcaram o horizonte das possibilidades econômicas e sociais que a terra somente foi considerada mercadoria a partir da Lei de Terras, em 1850(!). No mesmo ano, era aprovada a lei Eusébio de Queiroz, que tornava ilegal o tráfico negreiro; em si a lei não era muito diferente da de 1831, mas a pressão inglesa se fez sentir – a partir de 1850 não houve mais tráfico negreiro no Brasil. A lei Eusébio de Queiroz foi acompanhada de migração interna de escravos, do Norte e Nordeste, regiões decadentes, para Sul e Sudeste, principalmente Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, regiões mais dinâmicas e que necessitavam de força de trabalho escrava. Transformar legalmente a terra em mercadoria era uma medida que combinava essencialmente dois objetivos: 1) criar condições jurídico-políticas para a instauração de mão-de-obra assalariada, que durante décadas esteve atrelada à imigração; 2) impedir o acesso à terra do escravo, com vias de mantê-lo no cativeiro e, de grande relevância política, impedir que a possibilidade de acesso à terra fermentasse ainda mais a luta negra e escrava na transição de trabalho escravo para livre – uma passagem bastante delicada.
A partir dos anos 1860, a defesa do trabalho livre e o questionamento da escravidão começam a ganhar mais peso entre as elites. Em uma expressão político-ideológica do desenvolvimento desigual e combinado, serão as regiões mais desenvolvidas (São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro) que mais ferrenhamente se oporão à abolição. A permanência ou não de ministérios começava a se definir a partir do apoio político angariado em volta das vias de transição ao trabalho livre. Os próprios partidos, (liberal, conservador e republicano) eram insuficientes para garantir coesão política: mesmo em um sistema político altamente elitista, o que importava era saber se eram abolicionistas ou escravistas. Intensas e decisivas transformações econômicas vieram após 1850: ferrovias, rede bancária de alcance inédito, intensificação de diferenciação social e econômica, vinda de imigrantes, experiências com colônias, aumento da produtividade no campo, entre outras. A população escrava caía em termos absolutos e relativos e se concentrava nas regiões mais produtivas. A cidade se torna o palco das grandes agitações abolicionistas.
Quanto mais a abolição se aproximava, mais intensos eram os debate e a luta do povo negro e escravo. As leis do Ventre Livre e dos Sexagenários foram tentativas não somente de retardar a abolição mas controlá-la, mantendo a população negra – e os cada vez mais escassos escravos – sob controle. Em 1888, na homologação da Lei Áurea, somente 5% da população era escrava. Não era somente a abolição que estava em jogo: a partir dos anos 1870 se arrefece todo tipo de manifestação teórica racista que por fim dão corpo a uma ideologia opressora e racista, um lado decisivo da abolição brasileira. Esta não somente foi gradual e lenta, terminou por expulsar os negros das terras e dos centros produtivos (relegando-os ao subemprego), como cristalizou uma ideologia altamente racista “original”, com porta-vozes como José de Alencar, Silvio Romero, Nina Rodrigues, entre outros. Nas palavras de Ventura:
O racismo científico assumiu uma função interna, não coincidente com os interesses imperialistas, e se transformou em instrumento conservador e autoritário de definição da identidade social da classe senhorial e dos grupos dirigentes, perante uma população considerada étnica e culturalmente inferior[2].
Por diferentes caminhos, todos entendiam que o negro era um entrave à civilização, aos novos desafios do Brasil (entre outros debates, a mestiçagem era vista como um valor negativo, como o rebaixamento da raça branca, os negros eram vistos, enquanto raça, como correlatos a crianças que necessitam aprender a socializar).
É a combinação dos elementos que discutimos acima que possibilita o surgimento da ideologia da democracia racial. A visão arqui-reacionária de Gilberto Freyre somente pôde se cristalizar como um “símbolo” das relações raciais no Brasil, entre outros motivos, porque: 1) o negro se encontrava em condições de miséria no pós-abolição; 2) a estrutura agrária permaneceu inalterada; 3) a ideologia mais abertamente racista havia ganho forte espaço no Brasil mas não respondia às necessidade da década de 30, à crescente demanda de mão-de-obra industrial e ligada a serviços urbanos; 4) as transformações exigidas pelo impulso industrial, o primeiro momento no qual o povo negro se insere no circuito produtivo após a abolição (o segundo será nos anos 60 e 70) abriam caminho para uma visão mais mitigada, mais nuançada das relações raciais no Brasil (em comparação com a do período anterior). A forma pela qual se deu a transição do trabalho escravo para o livre, ao longo de 38 anos (a contar a partir da lei Eusébio de Queiroz), combinada com uma República (e seus abolicionistas parlamentares com horror à mobilização negra das ruas) que nem de longe significa alteração real na ordem, ajudou a abrir caminho para a ideologia da democracia racial. Não haver no Brasil um sistema legal de segregação racial, como nos Estados Unidos ou África do Sul, tornou-a mais permeável; entretanto, o mito da democracia racial diz muito mais da elite brasileira e da mentira que deve contar a si mesma e ao país, do que das relações raciais concretas. É, em última instância, uma ideologia semicolonial por excelência.
Opressão nacional e revolução
"Negras e Negros conscientes estão convocados pelo desenvolvimento histórico a ser tornar a vanguarda da classe trabalhadora" Leon Trotsky
A formação do Brasil como uma nação, como um país, esteve intimamente ligada à violenta opressão ao povo negro. Uma série de intelectuais (alguns nomes importantes como Clovis Moura e Décio Freitas ligados ao PCB), a partir dos anos 40 e 50, se dedicou a criticar a ideologia da democracia racial, ao mostrar que as relações raciais no Brasil não são harmônicas e que o negro sofre preconceito racial na nascente sociedade de classes brasileira – dentre este enfoque o maior nome é o de Florestan Fernandes. Porém, apesar de importantes críticas à democracia racial – muitas das quais serão incorporadas pelo Movimento Negro dos anos 60 e 70 – todos os críticos se adaptam a Freyre ao não considerarem a questão negra como uma opressão nacional. Freyre nega a opressão nacional ao povo negro ao limite ao transformar uma suposta união harmônica entre as raças numa característica brasileira fundante; Clovis Moura e os historiadores ligados ao PCB foram os primeiros a mostrar a resistência escrava no período colonial, mas muito de suas conclusões estão indiretamente ligadas à visão programática de uma revolução democrático-burguesa O próprio Florestan Fernandes, que buscava entender o processo e as consequências da transição do trabalho escravo para o livre, analisou como o povo negro foi expulso do campo e obrigado a viver no subemprego, nas favelas, sob a opressão racista, não superou a visão segundo a qual o negro faz e sempre parte ordem brasileira. Em parte essa afirmação é correta, o problema surge quando a unilateralização desse visão subvaloriza a opressão nacional sofrida pelo povo negro, e atrela mecanicamente, no caso dos reformistas, os destinos do povo negro à melhora do sistema capitalista. Para os revolucionários, a influência desta visão acaba por atrelar mecanicamente os destinos do povo negro a uma ideia de revolução que seria em larga medida alheia ou externa à sua própria luta. A realidade mostrara o contrário: será a própria revolução no Brasil que terá o povo negro a sua frente.
A luta contra a opressão nacional, ou melhor, a afirmação do povo negro enquanto tal, como norte da luta, está intimamente ligada à própria luta de classes, não é algo estático. Quanto mais acirrada a luta de classes, maior será a identificação do povo enquanto tal, em oposição, centralmente, à burguesia branca. Nos últimos dois embates entre classe operária e burguesia, a questão negra esteve presente; com menos peso em 64, quando ainda carregava muito das ilusões acerca da possibilidade (utópica e reacionária) de um desenvolvimento capitalista que incorporasse os negros em condições iguais aos dos brancos; e na década de 70, num fervilhar político, cultural e ideológico. O PCB atrelou a luta do povo negro à sua “revolução democrático-burguesa”, o PT subordina a luta do povo negro aos horizontes mesquinhos da ordem capitalista. Somente o programa dos revolucionários pode responder essa questão à altura. Resgatamos trechos de um debate que Trotsky realizou com a seção da África do Sul acerca da relação entre questão agrária e opressão nacional:
Temos que aceitar resolutamente e sem reservas o absoluto e incondicional direito dos negros à independência. A solidariedade entre os trabalhadores negros e brancos só se cultivará e fortalecerá na luta comum contra os exploradores brancos. (...) É possível que depois do triunfo os negros não acreditem que seja necessário formar um Estado negro separado na África do Sul. Por suposto que não os obrigaremos a implantá-lo. Mas que tomem sua decisão livremente, em base a sua própria experiência, não obrigados pelo sjambok (látego) dos opressores brancos. Os revolucionários proletários nunca devem esquecer o direito das nacionalidades oprimidas à autodeterminação, inclusive à separação plena, nem a obrigação do proletariado da nação opressora de defender esse direito com as armas na mão se for necessário[3] .
Em muitos aspectos, o Brasil está mais próximo da África do Sul do que dos Estados Unidos. A população brasileira é de maioria negra e a burguesia é uma casta branca. Hoje, ainda sob os efeitos, cada mais menores, de décadas de reação, grande parte da população negra não se reconhece enquanto tal. Mesmo assim, de tão explosiva que é a questão negra e de tanto medo que burguesia branca tem do levante do povo negro, um debate, de grande valia, mas tão pequeno frente aos reais desafios, como o das cotas nas universidades, adquire relevância nacional. Afinal, nas entrelinhas daqueles que se opõem às cotas não se está discutindo somente o direito a cotas, reivindicação legítima, mas a busca por reafirmar a inexistência de racismo no Brasil e, consequentemente, deslegitimar qualquer reivindicação, atual ou futura, do povo negro.
A luta de classes certamente reverterá esse quadro, e um novo ascenso operário e popular, para qual a esquerda revolucionária precisa se preparar, terá na questão negra um pilar decisivo. A autodeterminação do povo negro, sob os métodos da luta de classes, será um dos golpes finais da dominação burguesa.
[1]A presença de mais de 200 mil escravos nos exércitos da União contra os Confederados durante a guerra civil e a luta do povo negro durante o período de Reconstrução causaram pânico às elites do Sul e ao governo federal. A opressão ao povo negro, expressa nas leis de segregação racial, foram decisivas para a consolidação daquele país como potência imperialista.
[2] Roberto Ventura. “Um Brasil mestiço: raça e cultura na passagem da monarquia à República”.
[3]Leon Trotsky, “Sobre as Teses Sul-africanas – à sessão sul-africana”, 20 e abril de 1935. Extraído da compilação “La teoria de la revolución permanente” editada pelo CEIP-Argentina; p. 561-67; grifos do autor. Tradução de Daniel Matos.
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