"O que você sugeriria para melhoria do ensino de sociologia?"

Este post é apenas uma resposta que ao texto de Ana Maria Modesto, publicado em seu Blog Mente Social, ao qual termina com a seguinte pergunta:


O que você sugeriria para melhoria do ensino de sociologia?

Segue minha resposta:


Em minha opinião, tomando a questão colocada por você, não se trata apenas de uma questão de formação/qualificação dos professores, e também não se resume a uma melhora na infraestrutura das escolas e/ou nas carreiras dos professores (condição fundamental e a priori para uma melhora substancial da educação pública brasileira). Trata-se também, e fundamentalmente, de assumir uma postura crítica, emancipatória, frente a realidade social, ou seja, enquanto educador, assumir a posição de lutar pela revolução social. Com isso não quero reforçar uma visão sindicalista (muito presente na esquerda brasileira, infelizmente) de que só a luta vale, em detrimento da sala de aula ou do conhecimento. Pelo contrário, quero reforçar o caráter político do educador, portanto, o caráter ideológico de sua função. Enquanto tal caberá a ele tomar uma decisão: ou reproduzirá as falsas realidades propagadas pela ideologia dominante, que mascara a realidade objetiva com suas teorias apologéticas e contemplativas, ou assumirá o papel de desmitificar a realidade, desvendando suas formas fetichizadas. Para esta segunda postura, a única teoria que foi capaz de compreender os mecanismos da realidade e nos apresentar um método (dialético) de compreensão e praxis (superação) foi o marxismo. O professor revolucionário, marxista, rejeita qualquer forma dogmática, típicas de manuais, justamente porque a realidade não é assim; ele, em suas aulas, se preocupa em adotar um método que permita a que os seus próprios alunos desvendem, com suas próprias capacidades cognitivas, a realidade em que vive. Desta forma os alunos se auto-conhecem e conhecem o mundo, ou seja, tomam consciência (pois compreendem os mecanismos de funcionamento da realidade objetiva) e podem optar pela luta contra a opressão e exploração que são submetidos. O desinteresse generalizado dos alunos é apenas a manifestação no plano individual do fracasso da escola burguesa (e, particularmente, da escola pública brasileira), com seus métodos repressivos, de um conhecimento compartimentado e contemplativo; de uma escola desconectada da vida (o que torna todo o conhecimento adquirido uma abstração sem sentido para os alunos; e o que nos faz entender porque impera entre eles uma visão instrumental deste conhecimento: “se não serve para isso ou aquilo então o conhecimento ou a disciplina não é válido”). Portanto, assumir a postura ao qual eu estou defendendo aqui é assumir uma postura de luta visceral contra o modo em que está organizada a escola e a educação, já que esta é funcional à sociedade capitalista.

Universidade Fast Food e a necessidade de sua crítica radical

Por Ricardo Festi


O slow Movement surgiu depois de um protesto contra a abertura de um McDonald´s na Prazza di Spagna em Roma, no ano de 1986. Este foi o marco inicial do Slow Food, um movimento que defende o prazer de comer contra a lógica taylorista-fordista das grandes redes de restaurantes que se proliferaram no mundo inteiro depois da Segunda Guerra Mundial. O protesto e o movimento foram uma manifestação singular de um movimento muito mais amplo e heterogêneo contra a chamada “globalização”. Da comida o Slow Movement alçou voos para áreas diferentes, na defesa de um estilo de vida com mais sentido e conteúdo (mesmo que ainda não se tenha claro o que seria isso). Dentre eles estão o Slow Reading (por uma leitura lenta e concentrada dos textos, sem os incômodos e pausas das mensagens que chegam pelos celulares, as conversas pelos Chats, o Twiter, os emails, etc.) e o Slow Science, que laçou um manifesto contra a universidade fast-food, isto é, contra a lógica da produtividade cada vez mais presente no meio acadêmico. Defendem:

 
A ciência lenta foi praticamente a única ciência concebível por centenas de anos, hoje, argumentamos, ela merece ser revivida e necessita proteção. A sociedade deve dar aos cientistas o tempo necessário, mas mais importante, os cientistas devem fazer a seu ritmo. (...) Precisamos de tempo para pensar. Precisamos de tempo para digerir.**

Não deixa de ser uma reação progressista de uma camada da comunidade acadêmica contra as mudanças ocorridas nas ultimas décadas nas universidades e no meio intelectual. Entretanto, se suas críticas se centrarem apenas na exteriorização do fenômeno, não conseguirá atingir seu objetivo central: resgatar uma verdadeira forma de pesquisar e conceber a ciência (isso é discutível; o que concordamos com eles é que a forma de hoje não é a melhor). Falta-lhes a crítica radical (na raiz) das reais causas deste fenômeno: a expansão da lógica de mercado para uma área que antes não era gerida diretamente pelo mercado.

Podemos encontrar uma primeira explicação para isso em Zizek (2012):

Na União Europeia, a reforma do ensino superior pelo processo de Bolonha é um grande ataque conjunto ao que Kant chamou de “uso público da razão”. A ideia subjacente dessa reforma, a ânsia de subordinar o ensino superior às necessidades da sociedade, de torná-la útil aos problemas concretos que enfrentamos, visa produzir opiniões especializadas para resolver problemas apresentados pelos agentes sociais. Aqui, o que acaba é a verdadeira missão do pensamento: não só oferecer soluções a problemas apresentados pela ‘sociedade’ (o Estado e o capital), mas também refletir sobre a própria forma assumida por esses ´problemas´, reformá-los, discernir um problema no próprio modo como percebemos esses problemas. A redução do ensino superior à tarefa de produzir conhecimento especializado socialmente útil é a forma paradigmática do ´uso privado da razão´ no capitalismo global contemporâneo” (Zizek, 2012, p. 298).

É um fato que as reformas (contrarreformas, na verdade) ocorridas nos sistemas universitários nas ultimas décadas produziram mudanças importantes. Entretanto, entendo que essas mudanças aprofundaram um processo que teve início há décadas junto a expansão dos sistemas universitários (ampliação do número de alunos matriculados e de docentes) nos países de economia capitalista avançada. Este processo, segundo Russel Jacoby (1990), produziu a uma institucionalização da intelectualidade norte-americana (e do mundo inteiro), agora estável em seu emprego (e não mais dependentes de pequenas publicações para expor suas ideias), mas atolada por afazeres acadêmicos e burocráticos. A vida do intelectual acadêmico tornou-se enfadonha e monótona. Da boêmia, dos bares, do contato com artistas e putas (e para alguns, com o movimento operário) – ou seja, com a vida -, o ambiente social passou a ser as salas de aula, as palestras, as reuniões de departamento, as disputas por publicações, etc.

O processo ao qual reage o Slow Science é a exteriorização, na forma mais cruel e descontrolada, de algo mais antigo que a própria “globalização”. Trata-se de uma adequação (adestração e controle) da intelectualidade (tentemos imaginar Marx como um professor universitário hoje: impossível!) a serviço dos ditames do capital. Quando este muda, as suas formas de controle também mudam. O que torna esse manifesto progressista é o alerta que faz ao que vem acontecendo na produção predominante da ciência e do pensamento. Numa época de crise e decadência do modo de produção capitalista, que se mostra incapaz de (re)produzir a mais-valia por sua própria lógica (o que os liberais chamam de a “mão invisível”), a ação (intervenção) do Estado para garanti-la torna-se fundamental. Numa sociedade iludida pela democracia burguesa, as mentes pensantes (e críticas) não podem ser caladas com o cárcere. Para isso, métodos mais eficazes foram inventados: avaliações de produtividades, aumento da carga burocrática, cooptação do intelectual com salários relativamente altos, etc.

A resistência e a crítica radical são os primeiros passos, que devem vir acompanhadas por um movimento real e positivo de transformação da sociedade global.

Referências:
JACOBY, Russel. “Os últimos intelectuais: a cultura americana na era da academia”. São Paulo: Trajetória Cultural, 1990.
ZIZEK, Slavoj. “Vivendo no fim dos tempos”. São Paulo: Ed. Boitempo, 2012.

Mídia campineira tenta falsificar o óbvio: a força da greve dos trabalhadores

Por Ricardo Festi

O jornal Correio Popular deste domingo, 20 de maio, trouxe estampado no lado esquerdo de sua capa a seguinte chamada: "Prejuízos das greves expõe exageros do sindicalismo". Nenhuma surpresa, pois toda cobertura feita por esse jornal ao longo da semana, assim como a EPTV da Globo, foi marcada por um tosco movimento ideológico contra a greve dos trabalhadores do transporte (e também dos serviços públicos municipais, que continuam em greve) e uma percepitível falsificação da realidade. Vejam o tom do artigo escrito pelo jornalista Natan Dias:
Nos ultimos quatro dias, Campinas se viu mergulhada em um caos com a paralisação de serviços essenciais: transporte público, com a greve dos rodoviários, e, principalmente, nas áreas de Saúde e Educação, com a greve dos servidores públicos municipais. Em consequência, trabalhadores não chegaram ao serviço, gente se acumulou nos pontos e terminais, os poucos coletivos 'transbordavam', cidadão foram vítimas de agressão em conflitos, alguns até impedidos de trabalhar pelo movimento grevista, crianças ficaram sem aula e mães sem ter com quem deixar seus filhos para poder ir ao serviço, doentes sem atendimento médico e até mesmo cirurgias foram suspensas por falta de médicos e enfermeiros.
Este foi o tom das reportagens nessa semana: criminalização das greves. Precisam fazer isso pois de fato a greve do transporte coletivo de Campinas teve um apoio passivo do conjunto da população. É claro que ela atrapalhou a vida de muitos cidadãos ao longo desses dias. Por exemplo, muitos dos meus alunos não chegaram à escola, vários professores tiveram que adiar suas provas e mudar seus planos de trabalho. Toda greve traz determinados prejuízos. Mas isso não tira a legitimidade da ação política (pois toda greve é política). O que a reportagem não fez foi demonstrar os motivos que levaram a esta greve: os baixos salários, as altas jornadas, as péssimas condições de trabalho (nem mesmo refeitório decente esses trabalhadores possuem: lembrem-se da paralisação no Terminal Central há menos de um mês reivindicando, pasmem, banheiros e refeitório decentes).

Mas a ironia do artigo está logo neste primeiro parágrafo: Em consequência, trabalhadores não chegaram ao serviço, gente se acumulou nos pontos e terminais, os poucos coletivos 'transbordavam', cidadão foram vítimas de agressão em conflitos. Provavelmente este jornalista, míope e mal informado, nunca utilizou o transporte coletivo, pois saberia que os trabalhadores de Campinas são agredidos cotidianamente com este sistema de transporte público: todos os dias os pontos e terminais ficam amarrotados e chegamos atrasados em nossos trabalhos e escolas, pois as empresas não colocam mais ônibus para poder agariar mais lucros. Os culpados pelo "caos" desta semana, causado pela greve dos rodoviários, são os donos destas empresas e o governo municipal e não os trabalhadores. Estes, não apenas fizeram uma greve fortíssima (e isso sim incomoda a imprensa reacionária), como obtiveram vitórias. E, pior, tiveram apoio passivo da população.

Este apoio era evidente e poderia ser comprovado se estes meios de comunicação dessem democraticamente a palavra aqueles que realmente estavam nos pontos de onibus. E quando digo "dar a palavra" me refiro a reproduzir o conteúdo destes trabalhadores e não um recorte focando apenas em suas críticas espontâneas para fortificar a posição reacionária desta imprensa. Digo que o apoio foi passivo porque, apesar de insatisfeitos por não chegarem ao trabalho e, no imediato, verem que a culpa é da falta de ônibus circulando, a população compreendeu também que a greve foi um recurso necessário e legítimo. Por isso um apoio passivo. Se este fosse ativo, os demais trabalhadores sairiam dos pontos de ônibus e protestariam juntos nas ruas, não apenas pelas reivindicações dos rodoviários, mas também por um melhor transporte coletivo, barato e público (estatal). O objetivo desta imprensa reacionária é justamente impedir que este movimento (de solidariedade de classe) aconteça. Para isso, não informa a verdade, distorce os fatos e criminaliza a greve.

Não contente, a falsificação do jornalista vai muito além. Se este artigo fosse um trabalho de redação do ensino médio, seria reprovado pela incoerência na argumentação. Ele cita (retalha) professores da Unicamp e da PUC para dar um ar de cientificidade (de autoridade e verdade) para o seu movimento ideológico (falsificação da realidade). O resultado, uma citação contradiz a outra.

Dentre os citados, está o professor de Ciência Política da Unicamp, Armando Boito Jr., especialista em sindicalismo. Diz ele: "A recuperação do movimento sindical é forte no Brasil, mais forte do que foi em 1990. Afirmar que a greve é política é perder de vista um quadro muito mais amplo". O que o artigo apenas cita e não se preocupa em demonstrar, é que na última década, a maioria dos acordos salariais foram feitos acima dos índices de inflação. Ou seja, as greves foram um fator fundamental na recomposição da renda dos trabalhadores, perdida no período de FFHHCC. Sem compreender isso, não entendemos o movimento de emergência das chamadas "classes C" ou da "nova classe média" que a mídia tanto gosta em destacar com seu ufanismo barato - termo equivocado, falsificado e bem demonstrado no útimo livro de Marcio Pochman, A nova classe média?.

Apesar desta retomada das greves enquanto principal recurso da classe trabalhadora, ainda estamos longe de um movimento classista, que compreende que a greve é um recurso, um meio, na luta por superar esta sociedade capitalista. Um movimento classista é a compreensão de que vivemos numa sociedade de classes e que é fundamental que todos os trabalhadores, hoje divididos em diferentes categorias e sindicatos, se unifiquem pois são parte de uma mesma classe, criadores de todas as riquezas e, portanto, fortíssimos. Longe disso, o que vemos ainda é um movimento corporativo, muito bem controlado pelos burocratas sindicais, que vendem a ilusão do "Brasil potência" e da ascensão social. Infelizmente, esse é um dos fatores dos limites desta greve dos rodoviários. Mas isso não tira sua legitimidade, muito menos a sua força.

Abaixo, uma foto tirada por mim, na linha 2.60, num dia em que o transporte funcionou "normalmente". Esta cena eu não vejo nos jornais e nas TVs reacionárias:

Reflexões sobre escola e racismo.

Por Ricardo Festi

Estou convencido de que o tema mais importante para a disciplina de Sociologia no ensino médio é a Questão Negra no Brasil, já que é impossível explicar qualquer outra aspecto fundamental da sociedade brasileira (seja econômico, social, cultural, etc) sem passar por entender as razões e as consequências da situação do negro em nosso país. Sua secundarização, diante de outros inúmeros e importantes debates, diz um pouco do racismo que insiste em se manifestar. Mesmo com uma lei obrigando o ensino de história da África e da cultura afro-brasileira, ainda estamos muito longe do ideal almejado. Não basta baixar leis se os professores não forem capacitados para tal, pois a sua imensa maioria nunca teve uma aula sobre história da África na universidade, nem mesmo um tópico dentro de alguma disciplina. Mas as dificuldades aumentam quando olhamos para a realidade da escola pública brasileira e as condições de trabalho dos professores. Como parte do processo de precarização do trabalho, o papel do professor enquanto educador - um intelectual dentro da escola, que pensa e articula a reflexão junto aos alunos diante de uma realidade dinâmica - vem sendo substituído por uma pedagogia tecnicista, em que a gestão da escola, os aspectos burocráticos e os meios tecnológicos (ou o fetiche por estes) tornaram-se o fim e não os meios. O objetivo é apresentar números, numa lógica de competitividade, premiação (os Bônus) e punição. Busca-se uma escola eficiente do ponto de vista mercadológico, não uma escola reflexiva e crítica do ponto de vista pedagógico.

O resultado é que a questão negra e o racismo dificilmente são debatidos como deveriam nas escolas públicas brasileiras (em geral aparecem como algo folclórico, ou seja, exótico, em atividades com palestrantes, rodas de capoeira, etc). Fica aí evidente mais uma vez uma divisão "racial": nas escolas públicas, onde estão matriculados a imensa maioria dos negros, este tema não é abordado; nas escolas particulares, composta majoritariamente por brancos, a questão negra também não é abordada, e para muitos brancos essa falha pouco mudará em suas vidas, já que seu status quo (como o acesso as melhores universidades e empregos) estará garantido por esta sociedade racista. Ou seja, a lei que obriga o ensino de história da África e da cultura afro-brasileira é "para inglês ver".

Trazer para dentro da escola (e não somente nas disciplinas de humanas) o debate sobre a questão negra no Brasil é uma tarefa árdua, que enfrenta inúmeras dificuldades políticas e pedagógicas. Vejamos algumas: muitos alunos brancos não desejam debater essa questão, pois "não lhes diz respeito"; já os alunos negros, vários ficam incomodados com o debate, por tocar em feridas abertas que fazem parte de seu cotidiano e porque ele, quase sempre, é mal feito pelos professores, permitindo a reprodução do senso-comum, de esteriótipos ou de manifestações de racismo por parte de outros alunos; da parte dos professores, estudos acadêmicos já mostraram exaustivamente que são os principais difusores dos preconceitos dentro da escola - o que torna ainda mais difícil pautar esse tema. Uma lista enorme de dificuldades poderia ser descrita aqui, o fato é que essas dificuldades são a prova cabal de que o racismo é latente e por isso mesmo é necessário pauta-lo.

É óbvio que a luta contra o racismo não passa apenas pelo processo educativo. Não tenho nenhuma esperança (idealismo) de que seja possível a implementação de uma escola livre de racismo e formadora de sujeitos não racistas. O racismo é um fenômeno social que tem bases estruturais e concretas na formação da sociedade brasileira. A luta no terreno cultural é fundamental, mas deve vir acompanhada da luta no terreno socioeconômico, contra essa sociedade dividida por classes. A lógica de Marx para a questão judaica na Europa do século XIX também serve para a questão negra no Brasil: só haverá liberdade e igualdade plena para os negros (e todas as minorias) quando superarmos a ordem burguesa e capitalista.

Ao professor que compreende a importância deste debate e desta luta, cabe a ele problematizar a questão negra em suas aulas e na escola, aprimorando o arsenal conceitual e político dos alunos (principalmente os negros) para poderem lutar contra o racismo. A este professor cabe também seguir lutando dentro e fora da escola contra o racismo e esta ordem social do capital que se beneficia com a reprodução e manutenção dos vários tipos de preconceitos e opressões.

Este post não pretende fechar o debate, mas abri-lo. Ele é apenas um fragmento de minhas reflexões sobre esse tema espinhoso. Os leitores estão convidados a manifestarem as suas opiniões nos "Comentários" deste Blog.

* * *

Abaixo indico o Dossiê: Racismo: História e Historiografia da Revista dos pós-graduandos em História da Unicamp. Apesar de ter algumas diferenças conceituais com os autores, as pesquisas que este departamento fez nas últimas décadas já deram importantíssimos aportes para melhor compreendermos a história de nosso país. Materiais como este deveriam ser distribuídos em massa para todas as escolas públicas do Brasil, para que os professores, em sua árdua tarefa de se manterem enquanto educadores (intelectuais) na contra-mão desta enxurrada de burocracia possam ter instrumentos para sua reflexão, permitindo um primeiro diálogo entre a escola básica e a universidade.


http://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/issue/view/28

"Hoje, os bravos venceram", de Milton Pinheiro


Reproduzo logo abaixo o texto de Milton Pinheiro sobre a publicação do livro "Memórias de uma Guerra Suja", baseado no depoimento de Claudio Guerra, ex-delegado de polícia e agente da repressão durante a  última ditadura militar no Brasil. No livro, fatos importantes sobre esse período sombrio foram revelados. Esperamos que outros depoimentos como esse venham à luz e que possamos não só esclarecer e reconstruir a história brasileira, mas também julgar e punir os terroristas de Estado.

Hoje, os bravos venceram.


Milton Pinheiro*

Os dois últimos dias foram marcados pelo horror que vazou dos porões da ditadura, que se encontra em polvorosa diante da possibilidade da comissão da verdade se estabelecer. São informações colhidas pelos jornalistas que entrevistaram o verme Cláudio Antônio Guerra, delegado do DOPS do Espírito Santo, refugiado na aposentadoria que o Estado conivente lhe premiou, sobre o desaparecimento de presos políticos. 
Não estou preocupado se a confraria do crime matou o comparsa, Sérgio Fleury. Estou indignado pelo conjunto das informações que esse celerado, Cláudio Guerra, passou. São crimes contra a humanidade, são manifestações de bestialidade organizada pela classe dominante para manter os seus privilégios.
Hoje, 03 de maio, acordei com o compromisso de encontrar camaradas: homens e mulheres, na frente do ex-prédio do DOI-CODI na Rua Tutóia, para fazermos uma manifestação cobrando punição para os criminosos da ditadura burgo-militar de 1964.
Marchei para o ponto marcado, fazia frio nas cercanias do Ibirapuera e o dia estava cinzento. Lá estavam jovens indignados, ex-presos políticos que sobreviveram ao massacre da ditadura, e militantes. Ouvimos depoimentos dos sobreviventes do “porão do inferno”, visitamos o fundo do prédio onde muitos foram martirizados e foram assassinados, mais de 50 heróis do povo brasileiro, entre eles, os comunistas Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho.
A manifestação prosseguiu, os nomes dos bravos lutadores assassinados foram levantados, e tal qual a lança do guerreiro, o brado forte dos presentes cortou o vento gelado e fez surgir o sol entre nós. Um-a-um, o nome dos mártires foi saudado pelo grito forte de “presente, agora e sempre”.
Entre tantos nomes saudados pela memória dos presentes, bravos homens e mulheres, um, ecoou pelo pátio da delegacia e adentrou o meu pensar, “Nestor Veras: presente, agora e sempre”. Mas em tempos de combate, onde a terra ainda é tingida de sangue no Brasil, quem é esse homem que lutou ao lado dos trabalhadores e pelo futuro, entregou a sua vida?
Nestor Veras, líder camponês, nasceu em 19 de julho de 1915, em Ribeirão Preto, São Paulo. Era dirigente do CC do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e encarregado do trabalho no campo. Foi dirigente da ULTAB e da CONTAG, fundador e editor do jornalTerra Livre. Ao lado de Francisco Julião e Alberto Passos Guimarães, organizou o Congresso Camponês que ocorreu em Belo Horizonte, em 1961. Cassado pelo AI-I foi condenado a cinco anos de cárcere pela LSN – lei de segurança nacional, passou a viver na clandestinidade, mesmo tendo uma companheira e cinco filhos.
Esse bravo comunista foi preso em abril de 1975, quando passava na frente de uma drogaria, em Belo Horizonte. Estava desaparecido até ontem, quando ficamos sabendo, via um representante da escória da ditadura, que Nestor Veras tinha sido muito torturado e estava agonizando. Eu lhe dei o tiro de misericórdia, na verdade dois, um no peito e outro na cabeça. Estava preso na Delegacia de Furtos em Belo Horizonte. Após tirá-lo de lá, o levamos para uma mata e demos os tiros. Foi enterrado por nós.”
 Após ter participado da manifestação, pela tarde fui para meu rotineiro trabalho de pesquisa no arquivo do Centro de Documentação e Memória da UNESP, o CEDEM. Lá encontrei um jovem estudante da UNIFESP que trabalhava com um conjunto de caixas do arquivo que continham informações da luta camponesa e da reforma agrária no Brasil, todas com o nome de Nestor Veras. Examinei as caixas com os documentos e encontrei a presença do dirigente camponês em tudo: textos, recortes de jornais, artigos naVoz Operária, congressos, assembléias, conferências, resoluções, informes, análise sobre as lutas dos trabalhadores do campo e da cidade. Esse foi o camponês que pensou o Brasil e lutou pela revolução socialista. Nestor Veras, homem simples da classe trabalhadora que teve um texto seu, colocado em um livro da Brasiliense por Caio Prado Júnior. Homem de combate, mas que encontrava tempo para tocar clarineta para os filhos.
Comovido diante daquela cena, pude então compreender que os bravos que tombaram, de forma desassombrada, pelos interesses dos trabalhadores brasileiros, venceram.  Eles venceram o silêncio da repressão e a conivência do Estado, venceram o luto cínico das instituições e o papel asqueroso da imprensa burguesa. Eles venceram, porque estão presentes na vontade de saber da juventude, venceram porque marcham ao nosso lado na luta sem trégua pela revolução brasileira.
Hoje, mais do que nunca, os bravos venceram!
E nós, militantes em defesa da humanidade saberemos, quando chegar o momento, honrar o compromisso feito por Carlos Danielli (momentos antes de ser assassinado) ao escrever com o líquido vermelho das suas veias nas paredes do DOI-CODI: “o meu sangue será vingado”. Afinal, “por nossos mortos nem um minuto de silêncio, toda uma vida de combate”.


*Milton Pinheiro é professor e militante comunista.

Ato contra a Ditadura de 64 em Campinas

Contra-ato a comemoração ao Golpe de 1964 no Rio de Janeiro.

Interessante a movimentação pelo contra-ato em comemoração ao golpe de 64. Silvio Tendler é um velho cineasta, autor de "Jango" e muitos outros filmes deste gênero, que, como muitos outros de sua geração, tiveram ilusões nos governos que antecederam ao golpe. Sua indignação ao golpe deve-se ao ataque do que ele chamou de democracia pré-64, entretanto, os fatos precisam ser analisados mais de fundo, pois o que tivemos foram governos burgueses que tentavam tirar proveito de sua relação com as massas para manobrar nas suas fricções com as frações burguesas. Não se tratava de uma democracia plena, mas sim de um governo de contenção das massas que não poderia solucionar as contradições fundamentais da sociedade brasileira. O acirramento da luta de classes nos anos 1960 colocou em questão a luta pelo poder e uma resolução revolucionária. As massas camponesas, operárias e estudantis manifestavam suas demandas, em muitos casos de forma radicalizada. Entretanto, também em suas fileiras haviam aqueles que se alinhavam com as frações "progressistas" da burguesia, como era o caso do PCB, principal partido que dirigia os sindicatos operários e ainda com forte influencia nas Ligas Camponesas, mesmo com a dissidência de Francisco Julião. O resultado de toda complexa situação política foi o Golpe de 1964. Portanto, devemos marchar por outros motivos nestes próximos dias: não pela nostálgica "democracia" pré-64; mas pela força da classe operária brasileira, que assim que se levantou e mostrou a sua potencialidade, se necessitou de um golpe de estado para impedir seu desenvolvimento. Marchamos para relembrar aqueles que lutaram no passado e morreram nas mãos dos genocidas do regime militar. Marchamos para tirar a impunidade dos agentes da repressão. E, acima de tudo, marchamos para lembrar do futuro que ainda nos aguarda, e das lições passadas que devem nos iluminar...



A Lei da Anistia, o direito positivista e a impunidade dos torturadores.

O atual debate sobre a Anistia:

a mordaça herdada do passado e defendida no presente


Por Ricardo Festi

Recentemente teve início um novo capítulo da luta pela punição dos agentes da repressão do último regime militar brasileiro. Promotores do Ministério Público Federal do Pará resolveram acusar o coronel da reserva Sebastião Curió, símbolo da repressão à Guerrilha do Araguaia, por “sequestro qualificado” e crime continuado. Segundo os promotores, esse tipo de crime não se enquadra na relação de crimes prescritíveis. Ou seja, ele não seria enquadrado pela Lei da Anistia de 1979, que até hoje vem impedindo o julgamento e punição desses agentes. Esta ação dos promotores gerou um movimento reacionário, encabeçado pela mídia golpista e os principais personagens da criação e sustentação da Lei da Anistia, abrindo-se um novo debate político em torno desta questão.

No último domingo, o jornal O Estadão publicou uma entrevista com Miguel Reale Junior, professor titular da USP, ministro da justiça em 2002 no governo de FHC e um dos personagens na elaboração da Lei da Anistia, em que afirmou, sobre essa lei: “foi um processo de mão dupla, que também anistiou aqueles que praticaram tortura, que é um crime contra a humanidade. Ao mesmo tempo, porém, do ponto de vista interno, da política brasileira, foi o momento da volta dos cassados aos cargos públicos, dos professores às atividades universitárias, da organização dos partidos. Foi um preço alto? Foi. Mas foi o preço para trazer a paz política e social para o Brasil” (Estadão, 18/03/12).

Traduzindo em outras palavras: a Lei da Anistia é o sustentáculo do regime democrático burguês que surgiu no lugar da desgastada Ditadura Militar iniciada com o Golpe de 1964. Foi fruto de um acordo conciliatório entre os militares no poder e a sua maioria no Congresso Nacional, que tinha Sarney na presidência da casa, e a oposição burguesa e moderada, com Tancredo Neves à sua cabeça. Não à toa a chapa que ganha a eleição presidencial indireta anos mais tarde terá estes dois personagens à sua frente.

A sinceridade hipócrita de Reale é impressionante: “foi o preço para trazer a paz política e social para o Brasil”. Mais uma vez, traduzindo: foi a maneira que encontraram para impedir que a força do movimento operário, em ebulição naquele momento, com greves em todo país, se tornasse o fator determinante para impor uma transição ao regime democrático ou mesmo para outra forma de regime que superasse o Estado burguês.

Portanto, a ação de Miguel Reale e todos aqueles que compactuaram com a transição ao regime democrático, deixando os torturadores, repressores e ditadores impunes de seus crimes, manobraram dentro da superestrutura do Estado enquanto parte de uma ação consciente na luta de classe. No caso, ao lado do regime burguês. Agora esses mesmo agentes voltam a dar declarações a impressa defendendo um direito imutável e sagrado.

A ação dos procuradores é criativa, pois se trata de uma manobra dentro do sistema jurídico burguês, mas não é uma novidade. O Chile teve uma anistia muito parecida com a brasileira, garantindo impunidade a todos os que perpetraram violações de direitos humanos sob o regime do general Augusto Pinochet (1973-1990). No entanto, alguns procuradores usaram o argumento de que como os cadáveres não haviam sido recuperados após esses crimes, e era impossível determinar quando o crime prescrevera, a anistia não se aplicava a eles. Em 2004 a Suprema Corte chilena deu causa favorável aos procuradores e de lá para cá, mais de 700 agentes do Estado foram investigados e acusados de crimes nos tribunais chilenos, sendo que 30% deles foram condenados a cumprirem pena de prisão.

É necessário ser levado em consideração outra questão: diferente das demais ditaduras militares do Cone Sul, no Brasil o sistema Judiciário civil e militar foi muito mais cúmplice da repressão. Foram estes tribunais os responsáveis por muitas condenações a presos políticos – em sua maioria com base a evidências extraídas sob torturas. Lembremos da recente divulgação de uma foto de Dilma, ainda jovem, sendo julgado num tribunal militar. A mesma Dilma que hoje, junto com o PT, manobra para satisfazer os sinistros políticos da época da ditadura que sobreviveram depois da transição democrática.

Há ainda um longo caminho a ser percorrido até a conquista da efetiva punição dos agentes repressores da ditadura militar. É um direito ultrademocrático que nossa história seja esclarecida e que os crimes cometidos pelos agentes do Estado sejam julgados. Para isso é necessário um combate ao “fetichismo da norma” e do direito positivista, reproduzido por estes meios de comunicação e personagens da transição pactuada em nosso país. Se o direito é fruto de um estágio da luta de classes, ou seja, de uma correlação de forças entre as classes fundamentais da sociedade burguesa, garantido pelo aparato coercitivo do Estado, a possibilidade de muda-lo, arrancando concessões democráticas dentro do capitalismo, só será possível fruto também da luta e da organização do movimento sindical e político. Quanto a universidade, e em particular ao IFCH, é necessário uma intensificação dos debates políticos em torno desta questão e manifestações públicas contra a Lei da Anistia de 79 e pela punição de todos os agentes da repressão.

Publicado no Boletim da Juventude as Ruas!

"O socialismo jurídico" de Engels e Kautsky

Não é nosso objetivo neste Blog fazer propaganda de editoras, mas é inevitável um comentário sobre as publicações das obras de Marx e Engels pela Boitempo. O último lançamento traz a tradução de um texto de Engels e Kautsky sobre direito intitulado "O Socialismo Jurídico", uma análise sobre o direito burguês e, ao mesmo tempo, um combate contra os reformistas que acreditavam (e ainda acreditam) poder superar a ordem capitalista com a injeção de pequenas e contínuas medidas progressivas dentro do aparato das regulamentações jurídicas burguesas. Sem dúvida é uma instigante publicação para refletir neste momento em que as discussões sobre a legitimidade da Lei da Anistia de 1979 ou a legitimidade (e possibilidades) de qualquer ação contra os repressores da Ditadura Militar volta à tona.


Mais empolgante ainda é saber que está no prelo uma nova traduções de "O Capital" de Karl Marx.

Segue logo abaixo a apresentação do livro feita pela própria editora:


O socialismo jurídico

Friedrich Engels e Karl Kautsky

Planejado por Friedrich Engels e Karl Kautsky, o artigo “O socialismo jurídico” foi publicado sem assinatura na revista da social-democracia alemã,Neue Zeit, em 1887. O objetivo era dar uma resposta aos ataques à teoria econômica de Karl Marx, assim como elaborar uma crítica ao reformismo jurídico e combater a sua influência no movimento operário.

“À época da escrita deste livro, os reformistas, em combate às idéias revolucionárias de Marx, apontavam para uma transição controlada, objetivando ganhos por meio do aumento de direitos, sem transformar plenamente as contradições da exploração capitalista”, afirma na orelha do livro o professor da Faculdade de Direito da USP, Alysson Leandro Mascaro, para quem O socialismo jurídico é uma das obras clássicas do marxismo sobre a relação entre o direito e o capitalismo.

“Engels e Kautsky dedicam esta obra justamente a combater o socialismo dos juristas – ou o socialismo por meio do direito. O direito é, irremediavelmente, uma forma do capitalismo. Assim sendo, é a revolução – e não a reforma por meio de instituições jurídicas – a única opção realmente transformadora das condições das classes trabalhadoras”, conclui Mascaro.

O texto é também uma crítica ao livro O direito ao produto integral do trabalho historicamente exposto, do sociólogo e jurista burguês austríaco Anton Menger, publicado em 1886, e que vinha obtendo grande repercussão. Em tal obra, Menger tentou provar que a teoria econômica de Marx fora plagiada dos socialistas utópicos ingleses da escola ricardiana, especialmente William Thompson. Essas afirmações, bem como a falsificação da essência da teoria marxiana efetuada por Menger, não poderiam passar despercebidas a Engels, que decidiu interceder.

Além do artigo que dá título ao livro, este volume agora publicado pela Boitempo – traduzido do alemão por Lívia Cotrim e Márcio Bilharinho Naves, filósofo do direito brasileiro e autor do livroMarxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis (Boitempo) – traz ainda duas cartas de Engels a Laura Lafargue (filha de Marx) escritas em Londres, em 1886, que também tratam do tema.

Trecho do prefácio de Marcio Bilharinho Naves

“O texto de Engels e Kautsky tem grande importância teórica e política e é de impressionante atualidade. Nestes tempos, em que se abate sobre o marxismo uma avassaladora ofensiva em nome da democracia, isto é, do direito, e em que a ideologia jurídica penetra profundamente no movimento operário e em suas organizações, vale a pena voltar a atenção para o ataque sem concessões que Engels e Kautsky dirigem contra o núcleo duro da ideologia burguesa, a sua concepção jurídica de mundo. [...] A crítica à visão jurídica aparece, de modo ainda mais expressivo, na análise que Engels e Kautsky realizam da passagem da concepção teológica de mundo feudal à concepção jurídica de mundo burguesa, na qual se revela a natureza especificamente burguesa do direito, como forma social relacionada de maneira íntima com o processo de trocas mercantis: Visto que o desenvolvimento pleno do intercâmbio de mercadorias em escala social – isto é, por meio da concessão de incentivos e créditos – engendra complicadas relações contratuais recíprocas e exige regras universalmente válidas, que só poderiam ser estabelecidas pela comunidade – normas jurídicas estabelecidas pelo Estado –, imaginou-se que tais normas não proviessem dos fatos econômicos, mas dos decretos formais do Estado. Temos aqui alguns elementos que autorizam a formulação de uma ideia crítica do direito, que permita denunciar o “fetichismo da norma” e se oponha à teoria normativista para a qual o direito aparece somente como um conjunto de normas garantido pelo poder coercitivo do Estado.”

Trecho do livro

“O direito jurídico, que apenas reflete as condições econômicas de determinada sociedade, ocupa posição muito secundária nas pesquisas teóricas de Marx; ao contrário, aparecem em primeiro plano a legitimidade histórica, as situações específicas, os modos de apropriação, as classes sociais de determinadas épocas, cujo exame interessa fundamentalmente aos que veem na história um desenvolvimento contínuo, apesar de muitas vezes contraditório, e não simples caos [Wust] de loucura e brutalidade, como a via o século XVIII. Marx compreende a inevitabilidade histórica e, em consequência, a legitimidade dos antigos senhores de escravos, dos senhores feudais medievais etc. como alavancas do desenvolvimento humano em um período histórico delimitado; do mesmo modo, reconhece também a legitimidade histórica temporária da exploração, da apropriação do produto do trabalho por outros; mas demonstra igualmente não apenas que essa legitimidade histórica já desapareceu, mas também que a continuidade da exploração, sob qualquer forma, ao invés de promover o desenvolvimento social, dificulta-o cada vez mais e implica choques crescentemente violentos.”

Sobre a coleção

A publicação de O socialismo jurídico dá continuidade ao ambicioso projeto da Boitempo de traduzir o legado de Karl Marx e Friedrich Engels, contando com o auxílio de especialistas renomados. Com 14 volumes publicados, a coleção Marx-Engels teve início com a edição comemorativa dos 150 anos do Manifesto Comunista, em 1998. Em seguida foi publicada A sagrada família (2003), obra polêmica que assinala o rompimento definitivo de Marx e Engels com a esquerda hegeliana. Os Manuscritos econômico-filosóficos (2004) vieram na sequência, ao qual se seguiram os lançamentos de Crítica da filosofia do direito de Hegel (2005); Sobre o suicídio (2006); A ideologia alemã (2007); A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (2008);Sobre a questão judaica (2010); Lutas de classes na Alemanha (2010); O 18 de brumário de Luís Bonaparte (2011); A guerra civil na França (2011), em comemoração aos 140 anos da Comuna de Paris; os Grundrisse (2011); Crítica do Programa de Gotha (2012); e agora O socialismo jurídico. Ainda neste ano, a editora planeja publicar o primeiro volume de O capital.

Ficha técnica

Título: O socialismo jurídico
Título original: Juristen-sozialismus
Autores: Friedrich Engels e Karl Kautsky
Tradução: Lívia Cotrim e Márcio Bilharinho Naves
Prefácio: Márcio Bilharinho Naves
Orelha: Alysson Leandro Mascaro
Páginas: 80
ISBN: 978-85-7559-210-6
Preço: R$ 22,00 [preço ebook: R$ 13,00]
Editora: Boitempo

Veja também o sorteio de um livro do Marx: http://boitempoeditorial.wordpress.com/2012/03/14/sorteio-de-critica-do-programa-de-gotha-em-comemoracao-ao-aniversario-de-morte-de-karl-marx/

50 anos de Libertação da Argélia e as lições da geração de 68.

Por Ricardo Festi

Há exatos 50 anos a Guerra da Argélia terminava com uma importante vitória das forças de libertação nacional. O conflito foi retratado, alguns anos depois, no belíssimo filme ítalo-argelino A batalha de Argel (1966) dirigido por Gillo Pontecorvo. Este conflito, que durou de 1954 a 1962, foi um dos mais importantes na formação das futuras gerações de revolucionários da Europa e, centralmente, da França. Não há como entender as manifestações e as barricadas de maio-junho de 1968 na França sem compreender seu nexo com as batalhas realizadas alguns anos antes em defesa da independência do povo argelino.

A conjuntura do pós-Segunda Guerra Mundial era de enfraquecimento do imperialismo e colonialismo europeu e de explosão de lutas revolucionárias no mundo colônia ou semi-colonial. Neste período aconteceram as revoluções na China (1949) e em Cuba (1959) e a independência da grande parte das antigas colônias africanas e asiáticas. Mao e Che se tornaram ícones das gerações dos anos 1960/70. Gerações estas que apresentavam suas dissidências com o stalinismo e a URSS, principalmente depois do massacre realizado pelos tanques soviéticos na Revolução Húngara de 1956, e que procuravam novas formas de organização em pequenos grupos revolucionários de cunhos trotskistas, anarquistas, maoistas, guevaristas, etc.

Dentre todos os processos de luta por autodeterminação, a Guerra da Argélia teve efeito especial sobre os franceses. Filhos da pátria imperialista e opressora, milhares de jovens franceses passaram de meros espectadores ou de uma solidariedade passiva para ações concretas contra o imperialismo de seu próprio país. Um pouco antes, já na luta contra a Guerra do Vietnã, compreenderam que a vitória do terceiro mundo alastraria para dentro de seus países uma nova força revolucionária. Foi nesse contexto que se ampliou o apoio à Força de Libertação Nacional (FNL) da Argélia.

Portanto, diferente do que escreveu hoje o jornalista e corresponde do Estadão na França Gilles Lapouge (e correspondente deste jornal na época da Guerra da Argélia), de que a libertação argelina teria marcado o “fim do abismo” e o “início de uma longa amargura”, dizemos que ela marcou o início de uma nova geração de combatentes, em que a revolução era o centro de suas preocupações. Para atingir este fim, tinham que lutar contra uma sociedade burguesa caduca – e seus movimentos fascistas – e o stalinismo e o PCF, que agia conscientemente para impedir uma solidariedade real com os argelinos e separar os trabalhadores dos jovens revolucionários. Por algum tempo estes tiveram êxito em sua política, mas poucos anos depois explodiria na França, depois da brutal repressão sofrida pelo movimento estudantil no dia 11 de maio de 1968, a maior greve operária da história deste país, com ocupação de centenas de fábricas.

Em tempos de retorno dos conflitos sociais, a Guerra da Argélia nos traz inúmeras lições, dentre as quais a da necessidade de nos organizarmos e nos prepararmos, mesmo que no terreno ideológico e da propaganda, para os futuros grandes embates que teremos contra o capital. Nos traz também a necessidade de conhecermos estes grandes embates que ocorreram no século XX, tirando as lições dos erros e acertos, e nos apropriando do arcabouço do marxismo revolucionário.

* * *

Para não nos alongarmos mais, reproduzimos abaixo um trecho de um folheto publicado no calor dos acontecimentos de 1968 por Daniel Bensaid (um dos principais líderes estudantis em 1968 e futuro dirigente da Liga Comunista Revolucionária, organização trotskista mandelista) e Henri Weber:

O processo mediante o qual tem adquirido o movimento estudantil francês sua fisionomia atual se iniciou nos últimos anos da guerra da Argélia. Frente as atrocidades colonialistas do norte da África apareceu um movimento de rebelião moral entre os intelectuais e os estudantes franceses. A política do imperialismo francês feria diretamente a ideologia humanista compartilhada na universidade liberal. Casa vez era mais os estudantes que se colocavam contra a guerra colonial. Os mais conscientes e resolutos entravam nas organizações clandestinas de ajuda a FLN: Jovem Resistência, Movimento Anticolonialista Francês, Grupo Nizan. Ombro a ombro com os combatentes argelinos, se encarregavam de atividades de apoio e de reunir fundos. Organizavam, além disso, um perigoso trabalho de propaganda revolucionária no exército, a difusão de panfletos em quarteis, a implantação de núcleos militantes nos regimentos, a realização de espetaculares golpes de mão, como a detenção pela força dos abertos dos comboios de soldados. Frente a traição patriótica do Partido Comunista Francês, algumas centenas de estudantes se esforçaram assim em salvar a honra internacionalista do movimento operário francês.

Mas a massa estudantil estava disposta a apoiar a luta do povo argelino. Estudantes universitários e secundaristas iam a milhares nas manifestações contra a guerra colonialista. A batalha entre os defensores da Argélia Francesa e os partidários da independência era canalizada no seio da UNEF. A atitude do movimento estudantil frente a Revolução Argelina se achava no centro de todos os debates. As principais associações gerais caíam uma após outra nas mãos da esquerda. Os “minoritários” se convertiam em “majoritários”. O burô nacional da UNEF mudava de orientação e de mãos. A 27 de outubro de 1960 organizava uma manifestação na Mutualité. Apesar das denuncias do PCF e da UEC, que qualificavam esta iniciativa de provocação esquerdista idealizada pelo chefe da polícia, mais de 15.000 estudantes se concentraram na Plaza Saint-Victor e faziam frente aos guardas.

A partir de então se acelerou consideravelmente o processo de radicalização do meio estudantil. A OAS começava sua campanha de terrorismo na Argélia e na França. Frente à ameaça fascista, alguns militantes do círculo de história da UEC organizavam na Sorbone comitês de ação anti-fascistas, filiados na “frente estudantil anti-fascista” cujo objetivo era limpar o Bairro Latino dos comandos da OAS e da Juene Nación. Teve um êxito imenso na Sorbone, onde poucos dias depois de sua criação reagrupava já a várias centenas de militantes. O movimento se estendeu muito rápido as demais faculdades e aos meios intelectuais. Então tomou o nome de FUA. Sua ação foi metódica e eficaz: contando com arquivos bastante completos, organizava uma batida em regra de todo o Bairro Latino e expulsava das faculdades os militantes de extrema direita, simpatizantes e gente semelhante. Dona já do terreno, a FUA realizava intensa agitação em favor da independência da Argélia, com incursões relâmpagos contra as reuniões favoráveis à OAS, onde quer que se celebrassem. A vitória material conseguida em algumas semanas sobre os fascistas dava a FUA um prestígio enorme. Rapidamente esteve em condições de mobilizar dentro de prazos mínimos manifestações por surpresa milhares de estudantes. No dia da proclamação da independência argelina, seus militantes içaram por cima da Sorbone a bandeira da FNL.

O processo de radicalização política do meio estudantil, nascido do rechaço da guerra colonial, devia influir profundamente o movimento estudantil.

Iria provocar a metamorfose da UNEF, que de organização corporativista e folclórica se lançaria a experiência do sindicalismo estudantil.

Iria precipitar as crises da UEC, contida e secreta até então.

Iria criar condições e o marco político dentro dos quais se educou uma geração de militantes revolucionários que em sua maior parte são hoje os membros fundadores e os dirigentes dos grupos [revolucionários].

Trecho extraído do folheto Maio 68 – Ensaio Geral, escrito pelos jovens Daniel Bensaid e Henri Weber (e traduzido pelo autor deste artigo), ainda no calor dos acontecimentos. Detalhe: conseguimos este folheto, um tosco conjunto de folhas mimeografadas, com um livreiro de Porto Alegre (que ficamos sabendo depois se tratar de um ex-militante trotskistas) numa de nossas incursões pelo Estante Virtual.

129 anos depois, Marx continua presente.

Há 129 anos morria o maior pensador e revolucionário de nossa época, Karl Marx. Suas ideias mudaram a forma de pensar o mundo e seu legado para a classe trabalhadora foi incalculável. Ele, como poucos, compreendeu o seu tempo e, mais que isso, lutou por transformá-lo. Como todos os homens, Marx um dia se foi. Mas, como poucos homens, continuou vivo desde então através da força de suas ideias. Gerações e gerações de revolucionários deram continuidade a teoria e a prática que ele havia iniciado no século XIX. Camaradas como Rosa Luxemburgo, Lenin, Gramsci e Leon Trotsky.
Neste dia de lembranças e revigoramento do pensamento de Marx, reproduzimos o discurso de Engels em sua sepultura.


Discurso de Engels diante da sepultura de Karl Marx, no dia 17 de março de 1883.

A 14 de Março, um quarto para as três da tarde, o maior pensador vivo deixou de pensar. Deixado só dois minutos apenas, ao chegar, encontrámo-lo tranquilamente adormecido na sua poltrona — mas para sempre.

O que o proletariado combativo europeu e americano, o que a ciência histórica perderam com [a morte de] este homem não se pode de modo nenhum medir. Muito em breve se fará sentir a lacuna que a morte deste [homem] prodigioso deixou.

Assim como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da Natureza orgânica, descobriu Marx a lei do desenvolvimento da história humana: o simples facto, até aqui encoberto sob pululâncias ideológicas, de que os homens, antes do mais, têm primeiro que comer, beber, abrigar-se e vestir-se, antes de se poderem entregar à política, à ciência, à arte, à religião, etc; de que, portanto, a„pro-dução dos meios de vida materiais imediatos (e, com ela, o estádio de desenvolvimento económico de um povo ou de um período de tempo) forma a base, a partir da qual as instituições do Estado, as visões do Direito, a arte e mesmo as representações religiosas dos homens em questão, se desenvolveram e a partir da qual, portanto, das têm também que ser explicadas — e não, como até agora tem acontecido, inversamente.

Mas isto não chega. Marx descobriu também a lei específica do movimento do modo de produção capitalista hodierno e da sociedade burguesa por ele criada. Com a descoberta da mais-valia fez-se aqui de repente luz, enquanto todas as investigações anteriores, tanto de economistas burgueses como de críticos socialistas, se tinham perdido na treva.

Duas descobertas destas deviam ser suficientes para uma vida. Já é feliz aquele a quem é dado fazer apenas uma de tais [descobertas]. Mas, em todos os domínios singulares em que Marx empreendeu uma investigação — e estes domínios foram muitos e de nenhum deles ele se ocupou de um modo meramente superficial —, em todos, mesmo no da matemática, ele fez descobertas autónomas.

Era, assim, o homem de ciência. Mas isto não era sequer metade do homem. A ciência era para Marx uma força historicamente motora, uma força revolucionária. Por mais pura alegria que ele pudesse ter com uma nova descoberta, em qualquer ciência teórica, cuja aplicação prática talvez ainda não se pudesse encarar — sentia uma alegria totalmente diferente quando se tratava de uma descoberta que de pronto intervinha revolucionariamente na indústria, no desenvolvimento histórico em geral. Seguia, assim, em pormenor o desenvolvimento das descobertas no domínio da electricidade e, por último, ainda as de Mare Deprez.(1*)

Pois, Marx era, antes do mais, revolucionário. Cooperar, desta ou daquela maneira, no derrubamento da sociedade capitalista e das instituições de Estado por ela criadas, cooperar na libertação do proletariado moderno, a quem ele, pela primeira vez, tinha dado a consciência da sua própria situação e das suas necessidades, a consciência das condições da sua emancipação — esta era a sua real vocação de vida. A luta era o seu elemento. E lutou com uma paixão, uma tenacidade, um êxito, como poucos. A primeira Rheinische Zeitung[N47] em 1842, o Vorwärts![N126] de Paris em 1844, a Brüsseler Deutsche Zeitung[N53] em 1847, a Neue Rheinische Zeitung em 1848-1849(2*), o New-York Tribune[N62] em 1852-1861 — além disto, um conjunto de brochuras de combate, o trabalho em associações em Paris, Bruxelas e Londres, até que finalmente a grande Associação Internacional dos Trabalhadores surgiu como coroamento de tudo — verdadeiramente, isto era um resultado de que o seu autor podia estar orgulhoso, mesmo que não tivesse realizado mais nada.

E, por isso, Marx foi o homem mais odiado e mais caluniado do seu tempo. Governos, tanto absolutos como republicanos, expulsaram-no; burgueses, tanto conservadores como democratas extremos, inventaram ao desafio difamações acerca dele. Ele punha tudo isso de lado, como teias de aranha, sem lhes prestar atenção, e só respondia se houvesse extrema necessidade. E morreu honrado, amado, chorado, por milhões de companheiros operários revolucionários, que vivem desde as minas da Sibéria, ao longo de toda a Europa e América, até à Califórnia; e posso atrever-me a dizê-lo: muitos adversários ainda poderia ter, mas não tinha um só inimigo pessoal.

O seu nome continuará a viver pelos séculos, e a sua obra também!

Fonte: marxism.org

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